Um cego que tudo vê

Ricardo Alves, o comunicador da Rádio Comunitária Araçá, de Mari, é teatrista amador, com atuação nas peças “A peleja de Lampião com o Capeta”, “Mari, Araçá e outras árvores do Paraíso” e “Cantiga de Ninar na Rua”, todas de minha autoria, quando dirigia o Coletivo Dramático de Mari – CODRAMA - nas décadas 80/90. Pela “expressiva contribuição” que dizem ter prestado à cultura de Mari, já recebi diversas homenagens, entre medalhas, títulos honoríficos na Câmara de vereadores e diplomas de honra ao mérito. A maior delas é quando alguém se propõe a preservar minha obra, que é o caso desse incansável divulgador da cultura local, meu considerado Ricardo Alves.

O escritor americano Paul Auster disse que “o homem não tem uma única e mesma vida, mas várias arranjadas de ponta a ponta”. Fui e sou testemunha e coletor das manifestações culturais do meu povo em várias linhas de frente, entre elas Mari, onde morei por doze anos. Fiz pesquisas e contextualizei a história desse município paraibano na peça “Mari, Araçá e outras árvores do paraíso”, espetáculo que estreou em 1988 e fez razoável carreira, apresentando-se até aqui na capital da Parahyba do Norte, no auditório do Centro de Tecnologia da Universidade Federal da Paraíba em 23 novembro daquele ano, numa promoção da turma concluinte do curso de Ciências Biológicas, sob a direção do teatrólogo Carlos Cartaxo.

Ricardo Alves faz o programa “Gonzagão, sua vida e sua obra”, na Rádio Comunitária Araçá, de Mari, emissora que fundei com outros companheiros e companheiras marienses em 1998. No campo artístico, ele quer reviver o movimento teatral da cidade, com a montagem da peça “Mari, Araçá e outras árvores do paraíso”, para o que pediu minha autorização. Não só concedo o direito de remontar o espetáculo como me disponho a colaborar na direção, acreditando na trajetória de vida e amor pela arte de pessoas como Ricardo, Ozaneide Vicente, Severino Batista, Chico Tadeu, Manoel Batista e outras figuras que estavam nos nossos fazeres e viveres marienses nos bons tempos.

Não querendo ser melhor do que ninguém, mas preciso registrar que esta peça e o livro do mesmo nome representam a primeiríssima tentativa consciente e objetiva de plasmar uma imagem desse município através da arte, que é “uma opção de vida contra toda e qualquer forma de opressão: social, intelectual, estética, política...”, no entendimento do revolucionário artista plástico Hélio Oiticica. Por isso, sinto-me exultante pela iniciativa de Ricardo Alves, a quem chamo de Ceguinho por causa do seu problema visual. No entanto, esse “cego” é mesmo um visionário, idealista e sonhador por uma Mari mais civilizada e iluminada.

Minha amiga Ana Almeida, Presidente da Academia Sapeense de Letras, Artes e Cultura, pediu um nome mariense para ser entronizado na academia que agrega artistas de Mari, Sapé e Sobrado. De bate pronto, indiquei Ricardo Alves comunicador do lirismo, humor e imaginação que é a identidade desse povo. No pequeno universo da província, um cara como Ricardo Ceguinho incorpora a visão da sociedade em que vive, com suas pequenezas e grandezas. Reconheço nesse rapaz simples e míope um artista com capacidade de ter luz própria.

As Escrituras ensinam que só aqueles que conhecem e amam a Jesus Cristo têm visão espiritual. Este humilde incrédulo acha que o artista é o que enxerga mais longe, até no mundo alegórico do misticismo, mesmo carecendo de olhos físicos para ver o horizonte. Na cidade Mari, anda pelas ruas um sujeito por nome Ramiro Freire, conhecido como Miro do Babau. Roupa extravagante, paletó vermelho, óculos escuros, cravo na lapela, chapéu “cheguei”, ele anda pelas ruas tocando um pandeiro e cantando velhas cantigas de boemia. É um sujeito verborrágico. Quando se espalha, é difícil juntar. Ele tem a independência que a cultura do povo pressente. Albert Camus anunciava: “Sem a cultura, e a liberdade relativa que ela deduz, a sociedade, por mais perfeita que seja, não passa de uma selva. É por isso que toda a criação autêntica é um dom para o futuro”. Ricardo Alves, Miro do Babau e outros criadores do povo dizem as coisas mais significativas e perspicazes da forma mais elementar. Um salve para Mari e seus artistas e para Sapé e sua academia igualitária.

Fábio Mozart
Enviado por Fábio Mozart em 15/10/2024
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