A Leitura contra a morte - Como me tornei leitor

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Os tempos andam tão difíceis, que uma árvore que desse dinheiro cairia muito bem. Resolveria vários dos meus problemas e dos problemas de muita gente por aí. Uma árvore simples, mas frondosa, bem verde, com tronco firme, plantada na principal praça do centro da cidade. Essa árvore teria como fruto belíssimas notas de cem e de duzentos reais que, a cada vez que fossem colhidas, brotariam outras no mesmo lugar imediatamente. Ela ficaria ali, cuidada por todos e servindo a todos, conforme a necessidade de cada um.

Esse é um desejo que me ocorre agora, considerando a atual situação, e que há um bom tempo não está fácil. Isso me fez lembrar de um livro. É possível que você, que nasceu nos anos 80 ou 90, se lembre dessa história da árvore que dava dinheiro e saiba que, no fim, a coisa não deu muito certo. Estou me referindo a um clássico da literatura infantojuvenil que compunha a Série Vaga-lume: A árvore que dava dinheiro, de Domingos Pellegrini. Foi o primeiro livro que li de verdade, ou pelo menos de que realmente me recordo. Contava uns doze ou treze anos de idade. A escola recebeu diversos exemplares, que foram distribuídos aos alunos. Muita gente jogou o livro fora, riscou ou rasgou as páginas, lançou-o num canto qualquer ou num fundo de armário. Eu o guardei por um tempo, até que um dia, resolvi ler. Abri a primeira página daquela edição simplória distribuída pelo MEC e deitei a vista sobre as letras. Por alguma falta de cuidado da minha parte, o meu exemplar estava amassado, manchado e úmido (eu não era tão diferente assim dos outros alunos), mas não comprometeu a leitura. Deslizei meus olhos pelas primeiras palavras e procedi à leitura fácil e cativante. Prendeu a minha atenção logo de cara, de forma encantadora e proficiente. A linguagem muito simples, próxima aos contos de fadas ou das fábulas, foi capaz de me fazer devorar aquela novela da mesma forma que assistia aos animes que passavam na TV, com a vantagem de eu mesmo poder ditar o ritmo e não precisar esperar até amanhã para ler o próximo capítulo.

Não sei quanto tempo levei pra acabar aquela leitura, mas foi rápido. Linha por linha, página por página, uma após a outra, sem querer parar, eu li tudo. Eu, que já era acostumado a ler tudo o que se colocava diante de mim, desde panfletos entregues na rua, rótulos, placas e letreiros, até textinhos dos livros didáticos, estava descobrindo ali o prazer que há em ler um livro por completo. Como aquilo era bom, satisfatório, prazeroso. Ao acabar, queria mais, porque dali em diante não seria mais possível viver sem um livro por perto. Ler é um ato que desvela a vida, descortina os olhos e tira da vista a miopia que a opinião própria nos coloca. A leitura é a lente mais preciosa e eficiente de que podemos dispor para ler o mundo. É por isso que ela chega pra nós assim, de mansinho, sem avisar, através de um livrinho qualquer, despretensioso. O meu primeiro tem apenas a cara de despretensioso, porque no fundo, a história é das sérias e cheia de reflexões e ensinamentos. À época em que o li, eu ainda não tinha condições de perceber essas coisas, e nem era necessário. O mais importante foi a missão que "A árvore que dava dinheiro" tinha e cumpriu com êxito: tornar-me leitor.

Já se passaram mais de vinte anos dessa primeira leitura. Desde então, nunca mais me desapeguei dos livros. Nesse tempo todo, sempre estive “lendo alguma coisa”, com exceção de um período recente (já confessado aqui, em outro texto) em que pequei gravemente contra meu eu-leitor. Penso já ter me redimido, embora ainda não leia o quanto gostaria. Já li de tudo, desde livrecos irrelevantes, até clássicos universais, passando também por livros excelentes e belíssimos escritos por amigos e conhecidos. Também atuo como formador de leitores, uma vez que sou professor de Língua Portuguesa e, durante muitos anos, trabalhei projetos de leitura com finalidades diversas. Confesso que preciso retomar esse trabalho fundamental e que já rendeu alguns belos frutos. Porque a leitura é assim, como um inseto que nos pica e passa a incomodar. O local fica inchado, irritado e vai coçando. Até passar, já estamos infectados e não conseguimos viver sem ela. Passamos a enxergar o mundo de outra forma. Armados até os dentes com as armas da razão e do senso crítico, nos lançamos à vida, sem perder o encantamento que a leitura nos proporciona e, muitas vezes, nos empresta, para que não nos deixemos sucumbir ao desmantelo em que a realidade nos coloca.

Para ler o mundo, é preciso voltar-se para dentro e enxergar a própria alma que acolhe e sente o que o mundo é de verdade. Esse processo é doloroso e torturante, pode nos matar mesmo, um pouquinho a cada dia. Uma árvore que dá dinheiro resolveria muitos problemas, realmente. Mas, o antídoto, o remédio, o tratamento e até a própria cura mesmo, é a leitura, que nos carrega e transporta para outros mundo possíveis, nos alenta e traz a esperança, como uma canção de ninar cantada ao pé-de-ouvido, acalmando a criança. Não quero morrer nesse mundo, por isso, sempre carrego livros comigo e os leio sempre.

Thiago Sobral
Enviado por Thiago Sobral em 13/10/2024
Reeditado em 13/10/2024
Código do texto: T8172370
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