A narradora

Quando eu era moleque, antes de meu pai comprar uma televisão, assistia aos jogos do campeonato carioca com meu tio José. Ele tinha, lá no fundo da casa, um salão grande em que reunia os amigos ora pra se divertirem com um carteado, ora pra assistirem aos jogos. Naquela época, em preto e branco, eu assistia à genialidade dos craques que fizeram a minha geração. Entusiasta do Botafogo, eu me encantava com o Gérson lançando, orientando o time, fazendo a diferença naquela equipe de estrelas, que tinha, também, o Waltencir, nascido aqui em Juiz de Fora, um jogador que fora vizinho de um dos meus tios, o Nenzinho... Lembranças! Lembranças!

Sempre gosto de fechar os olhos, voltar no fio do tempo e de me ver naqueles tempos com os inesquecíveis amigos mais velhos da minha infância. Sim, eu era o mais novo; diria que o único pequeno ali, ao lado do primo Sílvio, já bem mais vivido, que, de vez em quando, me esclarecia uma ou outra regra que eu ainda não entendia muito bem... Hoje as crianças já parecem nascer sabendo e, se não sabem, vão aprendendo rápido nessas telas mágicas dos celulares. Sinal de uma época em que todos ficam muito perto e, ao mesmo tempo, tão distantes... Fazer o quê?

Me lembro que ficávamos atentos ao jogo... À época, se a memória não me trai, Luís Mendes, depois comentarista de muito prestígio e português bonito, narrava para nós. Lembro-me de que alguns levavam seus radinhos de pilha, pois gostavam mais da narração vibrante e mais rápida do rádio... Não sei se ouviam o Waldir Amaral, outro ídolo de minha infância... Se não era ele, fica o registro na conta da licença poética e de minha reverência ao narrador esportivo que marcou pra sempre a audição deste eterno aprendiz de contar acontecimentos...

Minha tia Helena, tão carinhosa com o tio José, de vez em quando ia lá na cozinha, bem próxima ao salão, chamava o tio e perguntava se queriam um café, que, dali a pouco, chegava por lá, para alegria dos torcedores fumantes, que havia muitos naqueles dias... Depois, ela ia para os afazeres, para as costuras... Ficava sabendo do resultado lá com o tio e, pelo que sei, nunca se encantou pelas delícias daquele esporte tão cultuado pelos homens. Não me lembro de ter visto, na infância, as meninas treinando, chutando bola, falando de futebol...

Hoje, como em tudo na vida, as mulheres vão, com muita luta, conquistando o que lhes é de direito. Elas ensinam nas universidades, atuam nas salas de cirurgia, clinicam, projetam edifícios, administram empresas, são mães e mesmo donas de casa. Ah! Jogam futebol, um campo de homens... Ah! Não ficaram na audácia de jogar... Algumas entenderam que são capazes até de contar, de narrar pra gente o que acontece no campo de futebol, comandando uma equipe de repórteres e comentaristas, que costumam ser também mulheres. Um escândalo, para alguns, estou certo! Esses que se escandalizam – que certamente não gostam do futebol feminino – e vão para as redes numa cruzada antimulher e, diria eu, fazem uma espécie de bullying contra as mulheres narradoras.

Recentemente, assisti na tevê a alguns jogos comandados pela Renata Silveira. Sabem o que achei? Busco o adjetivo e creio que não estarei longe da verdade se disser que foi uma experiência inovadora, diferente... Talvez, até mesmo um pouco estranha. Sou lá do tempo do Waldir, do Jorge Curi, do Mendes... Mais recentemente, todos ouvimos Luciano, Galvão, Cléber, Luís Roberto... Estamos impregnados de vozes masculinas no nosso imaginário da narração esportiva brasileira. E, de repente, quem ouvimos?

Ouvimos Renata Silveira, por sinal uma moça linda, mãe de família, divertida, uma pessoa leve, amável, sem deslumbramentos pessoais ... Mas esqueçamos esse ‘por sinal’. Melhor fora talvez nem saber dele para poder dizer com a maior isenção possível... Como ela narra? Para mim, ela, quando fala naturalmente, tem uma voz que se encaixaria muito bem na transmissão de notícias, apresentação de programas e em reportagens. É sua voz natural... Na narração esportiva, essa tonalidade natural se modifica para um tom mais emocional, mais vibrante, mais empolgante, sobretudo na hora do perigo de gol ou, é claro, no momento mágico do futebol, que é o gol. Acabou que fui me acostumando, e gostando, e torcendo por ela...

Para minha surpresa, vi uma enxurrada de gente, nessas redes digitais, depreciando o trabalho da moça, de uma forma que merece minha modesta, porém veemente contestação... Pelo que sei, outras narradoras têm sofrido esse tipo de manifestação indesejável.

Eu diria que não aceito isso, embora procure entender o que se passa, sem desculpar grosserias, é claro! Ficou no imaginário nosso aquela ideia de que futebol é coisa para homens... Essas introjeções vão passando de pai para filho, e somente a força de uma educação escolar e familiar é que poderá desconstruir certos preconceitos muito arraigados...

Eu –lembram-se? – sou do tempo em que só os homens viam e falavam de futebol. Me perdoo sempre quando me pego vítima desses estereótipos cotidianos, mas procuro estar aberto às inovações, principalmente as protagonizadas pelas mulheres, estejam labutando em um canteiro de obras ou comandando a transmissão de uma partida de futebol... Minha tia Helena, hoje, talvez estivesse conosco naquele salão assistindo ao jogo e ouvindo a Renata... A narradora tem talento. Aliás, pelo que sei, a moça tem muitos fãs. E, para esses, talvez tenha valido aquela máxima que Fernando Pessoa (cito de cabeça) escreveu para um famoso refrigerante: "No começo, estranha-se; depois, entranha-se". De minha parte, paro assim: deixem a moça trabalhar...