Sandices III
Ele desce do carro — 30 a 40 anos e o típico pai, ou seja, um tanto fora de forma — com duas mochilas, uma preta e outra rosa, nos ombros. Abre a porta para duas irmãs — menos de 5 anos, gêmeas, filhas — de cachos loiros e vestidos floridos, uma sonolenta e outra muito desperta.
Parada na calçada, a professora espera, estende os braços. A irmã desperta corre, pula, derrama um abraço na mulher que precisa se abaixar, quase sentar no chão para recebê-lo, tão miúdo é o ser humano que o entrega, e tão sincero é o afeto que o ato perdura, demora a se desfazer. Assisto a tudo escorado no muro, um figurante, às sete horas da manhã. Estou sorrindo involuntariamente.
Por um instante, eu imagino esse homem chegando em casa — fim de tarde, o céu roxo e laranja —, onde recebe uma recepção igual ou mais calorosa, infindos e puros abraços, contente como parece agora. Imagino um lar de lâmpadas quentes, de tons de sépia, em uma noite fria que é sabido e seguro.
Consigo sentir — sim, sentir — pessoas vivendo juntas, raízes profundas no solo, inseparáveis. Preocupações, contas pendentes, convênio compartilhado, bate e volta em Santos, legado e matrimônio, família, família, família; contente como parece agora. Sonhos pacíficos ao dormir.
A consciência me diz que idealizo um filme; o cinismo lista estatísticas, a traição e o divórcio, questiona, e segue desconsiderado. Há uma verdade à minha frente, percebo, que nunca conhecerei, que não me pertence, que rejeito e sequer quero, mas uma verdade, um propósito, ainda assim: missão comum que não posso cumprir, entregue a alguém que não posso ser.
E o portão da escola fecha, e ele parte sozinho no carro, e eu aceno, também sozinho, ao transporte que vem logo atrás.