Valha-me São Francisco.

Minicrônica

          O dia era do Santo lá de Assis. O ano, 1990. No fundo do quintal, Dona Francisca, então minha sogra, acendera algumas velas em homenagem a ele, a quem prestava devoção. Não chovia e nem fazia muito calor em Rio Branco, naquele dia, por isso a quinta-feira esvaía-se em noite, na mais perfeita calmaria, embora a tal noite mais parecesse uma criança. Churrasco, cerveja, parentes e amigos de Dona Francisca, e a minha vez de tocar e cantar...

          Guitarra empunhada, a música fluía, apesar de alguns narizes torcidos e as conversas paralelas...

... e alguém me amou uma vez,

quando mais eu queria...¹

           Era "Registro Geral" de Antônio Marcos.  O autor e intérprete ainda era vivo , mas não podia me ouvir, apesar de eu ter ouvido algum cochicho do tipo "se Antônio Marcos ouvir isso".  Agora o Santo, aí já não sei...

... Pra meu espanto e pranto imediato, 

incendiou-se o elevador do tempo...¹

          Os ouvintes coincidentemente iam buscar cerveja, carne, água e até paninho pra secar a mesa... nem disfarçavam. Ninguém merecia aquilo, viu? Sobretudo depois de terem ouvido meu cunhado, o músico Endy Jorge, que contava com a simpatia dos rio-branquenses e era também o dono da guitarra. Mas a canção seguia:

... e nunca plantei flores,

não dei boa noite,

não comi a terra.

Será que eu deixarei Um filho bem plantado?!...¹

          —  Paeeeeê! — agora era o Caio (por "cantar" em filho...), meu filho com menos de dois anos.

          Fingindo não ter ouvido, Até consegui terminar a música:

Onde andará o bêbado enfeitado?!

Em que lugar o girassol da vida?!¹

          — Paeeeeeeeeeeeê!!! Agora eu tinha que parar e, de quebra, não cantar a segunda música da minha quota.

          Tive que devolver a guitarra, para alegria do Caio e o alívio de muitos . O Caio não falava quase nada que  pudesse ser entendido, mas usando de sua astúcia, me puxou pela mão apontando algo no fundo do quintal. Estufou o peito e com a cara de orgulho e satisfação apontou para algumas velas: umas vinte, na verdade. Todas apagadas! "Meu são Francisco das Chagas!", balbuciei enquanto virava devoto, numa tentativa de receber clemência pela heresia em curso. "Dá muito azar, apagar vela acendida para Santo", diziam as "velhas" línguas. "E agora?" E agora!? Agora o menino continuava esperando o elogio por aquilo que considerava um grande feito. Concebi a ideia e conclui que era o mínimo que poderia fazer agora: "Como é que meu filho conseguiu fazer isso?". Depois de duas ou mais inócuas tentativas de explicar o sucedido, apelou sabiamente para a mímica. Batendo palmas entoou no seu próprio "idioma" a tão conhecida melodia do "Parabéns pra você". Finalizou reconstituindo um longo e abrangente sopro na direção das velas já apagadas... Hoje, exatos trinta e quatro anos depois, me vem uma dúvida: Será que o santo é rancoroso? Acho e tomara que não.

 

Uma releitura da crônica "Há Trinta Anos" - 04/10/2020

 


¹Fragmento da letra da música "Registro de Geral", de Antônio Marcos, vídeo aqui

Revisão ortográfica:

Gecilda Marina

Ilustração:

Imagem gerada por IA.