Amava poder correr pelas ruas, mas seus pés vertiam água em suas Havaianas tornando-as escorregadias, elas não paravam em seus pés! Mas corria mesmo assim. De rua em rua, de esquina em esquina. Quando não estava correndo, estava saltitando. Tentavam lhe pôr os tênis, mas não suportava o calor em seus pés. Preferia dia sim e dia não chorar para toda a vizinhança ouvir ao ter seus joelhos limpos e medicados com o Merthiolate fatal. Esse era o castigo para crianças teimosas dos anos 80.
Às vezes sozinha, às vezes com as amigas. Ia ao bar do vô Manoel tomar Gini ou somente para dizer oi. Ia à benzedeira, porque sempre achava que tinha alguma coisa. Passava na dona Iolanda para ver o Louro. Andava e encontrava feitiços nas esquinas. Muitos precisavam pagar o aluguel e saciar a fome. Tinha medo, fazia o sinal da cruz e continuava correndo, mas tinha curiosidade, quem estava lá na esquina? No entardecer, tinha que voltar para casa.
Quando não saía de tarde, chegava a noitinha e era consumida por uma vontade desesperada de dar uma voltinha. Percorria alguns cruzeiros até cheirar o feitiço da Dama da Noite e ter seu estômago revirado. Era hora de voltar!
Nas correrias da tarde, algo sempre poderia acontecer. Não era ainda a tal kombi dos palhaços, isso só viria nos anos 90. Nos anos 80 era algo bem mais real e horripilante! Corria e corria com a Sandra e a Diene, mas de repente, a Deja virava a esquina justamente quando se estava virando-a, e era perna para quem te queria, mas não sem antes resbalar, cair e lanhar os joelhos, às vezes, perder tampões de pele no asfalto quente. Era tanto desespero. Desesperos que ficaram gravados na pele.
Sua imagem me é tão nítida ainda hoje, mais de trinta anos depois!
Senhora mal cuidada, andava com um vestido azinzentado até os joelhos e sobre a cabeça a sua trouxa. O que trazia nela? Seriam roupas ou comidas? Há quem dizia que era um amontoado de lixo apenas. Tinha jeito de bruxa. Mas era apenas uma mulher abandonada à própria sorte na cidade grande. Quem a teria trazido para cá? Será que lá na Bahia, ela tinha família? Terá se apaixonado por alguém que lhe prometeu o mundo e que, depois, a abandonara? Ou viera sozinha viver um sonho? Retirante e sozinha no meio do caos preconceituoso de São Paulo, estava grávida. Não sabia nenhuma letra, nem sabia contar. Não tinha boa aparência e não conseguiu nenhum emprego. Dormia sob as marquises. Comia o que lhe davam. Mas estava sempre à procura dela. Sua filha.
Toda menina era sua filha perdida no tempo, entregue àquelas que queriam ajudar a criança que vinha ao mundo sem pai e sem paradeiro. No ônibus ainda, Dejanira caiu em si, chorou e desceu. Tentou voltar ao hospital e mudar de ideia, mas já era tarde, a criança já tinha sido encaminhada a outra família. Nunca se perdoou, então andou e andou por todas as ruas à procura dela. Calculava o tempo, e ao encontrar meninas da idade, queria para ela, pois era sua filha perdida. Só não bulia com a filha do guarda, não queria apanhar ainda mais! Tomava cachaça para esquecer. Para driblar a fome. Para disfarçar suas cicatrizes. Para não estar sozinha.
Foi que uma noite, homens a sequestraram. Ela e mais alguns mendigos sob a marquise da Arapuã. Seu fim foi ser fragmentada para salvar vidas ricas. Mas, na infinita misericórdia divina, Deja fora acolhida e bem cuidada. Agora, recebe banquetes nas esquinas, ajuda as mães a encontrarem seus filhos perdidos e seus filhos a suas mães. Encontra nos caminhos os desencontrados, remenda-lhes a alma e os põe de volta em seus caminhos.
Parece que ainda a vejo quando dobro as esquinas, quando percorro os cruzeiros. Com seu vestido, sua trouxa e sua garrafa de pinga. Ela sempre estará lá. Onde quer que eu vá.