Ermitão
- Alô. Você me ligou pelo menos quinze vezes nos últimos dias. Não consegue mandar mensagem e esperar a resposta chegar?
- Gamaleno Ferratto Souza de Paula. Esperar por uma resposta que eu Sei que nunca vai chegar? Eu estava preocupada com você. O que aconteceu dessa vez, você se internou na sua casa?
- Só minha mãe e você me chama pelo meu nome completo, coisa mais ca-fo-na. Estou ótimo, contente e trabalhando. Te escrevi sim uma mensagem semana passada dizendo que táva tudo bem e estou tô te ligando agora.
- Quase que eu fui até seu apartamento. Pensei que você pudesse estar isolado, deprimido e podia acabar cometendo alguma loucura. Você escreveu pra mim algo como "estou trabalhando bastante". Francamente.
- Estou vivo como você pode perceber. Cheio de serviço pq finalmente assinei um contrato de trabalho mais longo que vai me deixar tranquilo por algum tempo.
- Que bom que você está trabalhando no que você gosta, mas saiba que você não precisa se isolar do mundo, pode sair dessa caverna, tomar sol, encontrar os amigos, ter o mínimo de vida social.
- Nízia, por favor, pare de drama. Eu além da minha rotina de escrita também vou na padaria, vou almoçar um PF no barzinho aqui perto, caminho um pouco, te confesso que compras de mercado eu faço pela internet. Minha filha tem vindo aqui me visitar, toma café comigo, vemos séries juntos. Balada e lugar cheio de gente você sabe que eu detesto, nunca gostei. Depois de ter ficado isolado na pandemia não deixo de ver quem eu amo e nem quero passar semanas inteiras sozinho. Para os meus padrões minha vida atual até que está muito agitada.
- Gama, você sabe que pode me mandar mensagem caso você passe mal ou precise de alguma coisa. Né?
- Affeee, sim. Deixa eu te contar, estou trabalhando em um roteiro baseado em um livro, dessa vez estou ganhando bem e com minhas contas finalmente em dia, fazendo apenas que eu amo: escrever.
-Você está escrevendo sozinho? Esses trabalhos não são em equipe?
- Estou escrevendo sozinho dessa vez. Não posso contar ainda o que é, mas se tudo der certo você vai assistir o resultado no cinema daqui algum tempo. Encontro poucas vezes o diretor do filme, só quando ele me chama pra uma reunião.
- Sua filha como está?
- Está muito bem, uma mulher inteligente, muito amorosa, cursando faculdade de Belas Artes, amando o curso. Você não perguntou, mas a mãe dela está bem e depois de um tempo conseguimos ser colegas, minha filha ficou feliz. Esse clima de civilidade é bom para nós três.
- Gama, outro dia fui jantar com amigos meus da época da nossa faculdade. Contei para ele que tenho contato com você. Comentei também que depois que você trancou o curso, virou um escritor e roteirista e, olha, eles ficaram surpresos. Gostaram de saber notícias suas. Na faculdade você era tão introspectivo, falava pouco, sempre lendo um livro.
- Quando entrei na faculdade de cinema, encontrei meu lugar no mundo, fiz amigos que gostavam de audiovisual e literatura. Fazer publicidade não tinha nada a ver comigo. Escrever é um ato solitário, você sabe disso. Requer concentração, um ambiente sem barulho, muita dedicação, e é tudo o que eu mais amo fazer. Conseguir viver da escrita sempre foi meu objetivo. Algo se encaixou dentro de mim quando comecei escrever e publiquei meu primeiro livro. Eu nasci para fazer isso. Nízia, podemos ir almoçar juntos dia desse num restaurante, comer bem, bater papo. Jantar eu não digo porque final da tarde e à noite é quando eu mais sou produtivo, tenho escrito muito. Não acordo muito cedo, de manhã respondo e-mails, leio notícias, escuto música, arrumo as coisas em casa. Você tem o contato do pessoal da época da faculdade e pode chamar eles também.
- Sério isso? Vamos almoçar juntos, sem pressa? Ótimo. Quero conversar ao vivo, tomar uma cerveja, não aguento mais fazer chamada de vídeo. Depois de tudo que passamos trancados meses em casa eu faço questão de conversar pessoalmente e abraçar meus amigos. Eu vou mandar mensagem para o grupo convidando o pessoal que estudou com a gente por pouco tempo, até vc trancar o curso.
- Sim, você escolhe a data. Pode ser inclusive num sábado.
- Vou finalizar um trabalho grande com a equipe da agência próximos dias. Na próxima semana estarei mais tranquila e vou te ligar para marcar. Tem uma coisa: Se você não responder minhas mensagens vou contratar um carro de som para ir até a porta do seu prédio, com um locutor bem escandaloso, do tipo que grita no megafone, pedir para ele soltar balões, e jogar papel picado na rua em sua homenagem. Você vai morrer de vergonha.
- Isso parece uma ameaça? Combinado, vou te escrever . Tenho pavor de imaginar alguém parado berrando meu nome na frente do prédio, incomodando os vizinhos e acabando com a minha reputação que já não é grande coisa.
- Certo. Gama. Beijo.
- Beijo. Tchau