Reflexão metalinguística da crônica.
Há de se problematizar a crônica a partir de alguns textos pertencentes ao gênero que, situados no plano cronológico apresentam perspectiva crítica e metalinguística sobre o próprio "fazer crônico". O nascimento da crônica de Machado de Assis. "O cronista é um escritor crônico" de Affonso Romano de Sant'Anna e "A última crônica" de Fernando Sabino.
A crônica é gênero originado no cenário dialético da produção literária brasileira, a crônica tem sido associada, no âmbito histórico de sua avaliação crítica no Brasil, a uma produção literária de menor valor cultural, especialmente diante de seu caráter efêmero.
No panorama crítica da crônica sob outra perspectiva, a partir de uma reflexão amparada pela própria produção literária do gênero em três momentos de sua autodefinição e ao escancarar as contradições do mundo banal e concreto.
Antonio Candido (1984) observava que a despeito de grandes autores a aclimatação nacional original e de valores estéticos de criação singulares, a crônica fora frequentemente percebida como gênero menor. E seus aspectos estilísticos, estéticos e particulares do gênero foram, em alguma medida, sendo ignorados na valoração crítica e intelectual desse tipo literário.
A crônica foi academicamente estigmatizada, o gênero tem recebido maior atenção nos espaços críticos nacionais, especialmente, a partir de percepções que, além do valor cultural, consideram a dimensão de elaboração existente por detrás de elementos por vezes entendidos como detratores da criação literária, como o humor, a proposital despretensão, a efemeridade e a versatilidade, características que impedem situar a crônica no panorama da criação tradicional e, por outro lado dificultam sua acepção no interior de uma literatura moderna consciente da limitação do discurso ordinário.
O gênero “crônica” ainda apresenta lacunas dentro do estudo literário e, como postulou Meyer os conflitos remontam suas origens dos jornais populares, a refletir dificuldades na formação da abordagem crítica de um gênero que ora relata o literal noticioso, ora ficcionalizada sobre esse, ora tomada como objeto do mundo externo, ora expressa em “eu-lírico” absolutamente confessional, ora dialoga com o tradicional romantismo poético ou, dilacera-se subversivamente. Afinal, Meyer atribuiu às crônicas a característica de materiais legitimamente voláteis e versáteis.
Considera-se que é justamente a partir de sua despretensão em face dos outros gêneros consolidados, principalmente o romance e o poema que a crônica deveria ser entendida e avaliada desde sua construção histórica singular e altamente regional, bem como seus desdobramentos estéticos decorrentes dessa formação no sei de condições materiais e de público dentro do contexto brasileiro.
As obras são inquestionavelmente pertencentes ao gênero crônica e, estão tematizadas e estruturadas no debate metalinguístico do fazer cronístico, incorrendo em explicações diferentes articulações da crônica.
As distintas expressões da crônica numa comparação analítica apresentam potencial de reflexão sobre valores históricos e estéticos do gênero, bem como sobre os aspectos do cotidiano-soccial de seus respectivos períodos de publicação. Em geral, há caminhos e problemáticas críticas do gênero original e variante por um lado, mas consideravelmente estigmatizado por outro, principalmente por uma condenação da crônica à mera trivialidade de jornal, desprovida de ficção, criação ou valor estético imanente.
Compreender a crônica e iluminar a singularidade de sua produção no Brasil, faz-se imprescindível discutir suas origens como gênero. A respeito dessa história de origem, coexistem duas principais vertentes teóricas. A primeira crônica como originária do ensaio inglês, conforme argumentou Afrânio Coutinho (1986). Já a segunda crônica como originária dos folhetins aos moldes franceses, foi a tese defendida à por Marlyse Meyer (1992) e Antonio Candido (1984).
No Brasil, a palavra crônica atravesso sensível transformação semântica passando a ser generalizada na literatura e usada como gênero vinculado ao jornalismo. E, numa acepção popular, o termo passa a ser associado a uma prosa descontraída, sem maior definição temática.
Na busca de reconstruir a origem da crônica no Brasil em sua dimensão como gênero literário-jornalístico de constituição nacional, se dedicou a investigar o folhetim e suas seções de Variedades dos jornais, diante do argumento de uma relação entre o folhetim francês e suas influências nacionais à futura consolidação da crônica à brasileira.
Como ponto de partida da reflexão de Meyer, de um dos primeiros comentários publicados por Machado de Assis sobre o tema, no qual o autor expressa uma dúbia opinião do folhetim como nova entidade.
Analisando o texto de Machado de Assis, o folhetim seria uma estranha e interessante figura, mas, sobretudo, um gênero estrangeiro mui dependente da França e difícil aclimatação no Brasil.
Seguiu Meyer a descrever a origem do termo na França e suas implicações jornalísticas. E, inicialmente le feuilleton se refere a um espaço do jornal localizado no rodapé, dedicado ao entretenimento variado. A crônica era um contraste com a notícia jornalística cinza, esterilizada.
E, assim, o folhetim francês se constitui como um espaço de vale-tudo, englobando diversidade escrita que caminhava desde receitas, passando por análises literárias, até as formas experimentais de narrativa.
A partir dessa variedade decorrem as seções cada vez mais comercialmente importantes aos jornais franceses, as chamadas Variétés, cuja problemática de influência do poder econômico deve ser considerada. Esse novo formato, uma modalidade de romance adaptada ao corte, ao suspense e aos interesses por assinantes e leitores do folhetim, inserido no contexto burguês da literatura industrial e das contradições estéticas do capitalismo moderno. E, nesse sentido, o termo "folhetim", por vezes, passa a se referir aos romances seriados e suas dimensões comerciais.
A grande influência cultural da França no Brasil, o folhetim brasileiro denominado de Folha Histórica ou Apêndice segue similar cronologia de desenvolvimento, com a presença de pequenos espaços nos jornais, seguida pelas diversidades e, por fim, romances seriados, com conteúdos divididos entre originais e traduzidos. Além de romances segmentados diariamente. Histórias curtas de ficção que ganharam destaque de divulgação, antecedendo a crônica brasileira.
A nova identidade analisada por Machado não se referia ao romance seriado servido em pequenas partes. E, nesse sentido, uma confusão entre as nomenclaturas ao longo da história, com críticos a definirem o folhetim tanto como romance-seriado quanto como espaço para variedades.
Meyer antes de estabelecer crucial diferenciação, argumenta como as histórias seriadas se tornaram gênero popular no país. E, apesar da problemática econômica, associava-se ao gênero uma impressão de participação popular, visto que as carta dos leitores conseguiam mudar os rumos da narrativa segmentada. É preciso circunscrever a essa observação o recorte do chamado "público leitor" do Brasil no século XVIII e XVI, cuja alcunha de "popular" em muito se distancia da realidade demográfica.
Esse folhetim sem rebuscos foi o precursor das novelas brasileiras e teria exercido ampla participação da imprensa nacional, adquirindo traços locais a partir de interesses econômicos sem uma legítima vinculação cultural. Machado, no entanto, não parece se referir aos romances seriados, salientando a dificuldade de diferenciar o Folhetim em suas histórias sementadas.
Dos Folhetins, no plural, como espaço de variedade na qual a definição de Machado de Assis, sendo uma fusão admirável do útil ao fútil, parto curioso e singular do sério consorciado como o frívolo, parece melhor se adequar. Para Meyer dos folhetins se fez a crônica, isolando o romance-segmentado, vinculado à artificialidade do discurso capitalista de participação da burguesa, do espaço de variedades, esse sim ambiente de gestação da crônica nacional.
É evidente que o referencial de folhetim de Machado de Assis não engloba os romances segmentados, mas sim, aquilo que se chamará de folhetins variados, um espaço aberto à liberdade criativa que se torna com tempo, a base do fazer crônico moderno que a despeito de usar linguagem cotidiana, e da ironia crítica, vem prosperando no gosto dos leitores.
O espaço vazio não possui uma intenção explícita de fazer literatura, mas que a liberdade proporcionada tanto à crônica como aos folhetins, ultrapassava, coo até hoje, o mero informe jornalístico formal. Assim, além do valor analítico cultural de tais textos, repletos de relatos e comentários do cotidiano de seus respectivos períodos históricos, a autora destaca o surgimento gradual de um certo teor estético-literário, tão presente em certos textos da seção de Variedades.
É relevante ressaltar como o folhetim, na qualidade de um espaço aberto a tudo, e converte-se num locus de criação e de experimentação para os pretensos escritores do século XIX.
Foi um verdadeiro laboratório, conforme Meyer (1992) é o folhetim aquele que vai receber as primeiras tentativas de se fazer uma literatura nacional. Antonio Candido (1984) enfatizou a origem folhetinesca da crônica e sua subsequente adaptação original feita no Brasil e sua inerente relação da crônica com os veículos jornalísticos, no qual se deu sua dimensão efêmera.
A crônica não seria, portanto, concebida para fazer-se “durar”, como pretendem os romances e poemas, mas para um contato temporário com um público social aproximado – correndo-se o risco de reprodução dos paradigmas discursivos daquele tempo, mas contando também com a oportunidade de apresentar um posicionamento crítico sobre o cotidiano a partir da ironia de suas próprias condições e contradições, ainda que se valendo da linguagem ordinária.
Apesar da efemeridade, certas crônicas adquiriram um caráter duradouro, especialmente a partir da subsequente valorização do retrato criativo e descontraído das contradições sociais e problemáticas estéticas de um país inserido num processo de construção altamente dialético.
A crônica não nasceu com o jornal, mas quando ele se tornou cotidiano, antes de ser crônica, foi antes folhetim, aquela nota de rodapé sobre questões do dia, da política e da literatura. Ao longo do tempo, foi deixando de lado a intenção de informar e comentar, inserindo-se numa lógica industriária do humor.
Já em outra vertente, porém, a crônica toma a linguagem popular para desconfiar de suas próprias bases, valendo-se da ironia e do humor não à reprodução dos paradigmas, mas ao dimensionamento de uma crítica sobre estes, aproximando-se, de certa forma, do fazer poético, ainda que a partir de outra abordagem.
De volta as reflexões de Antonio Candido que classificou a crõnica como gênero menor, numa perspectiva de valorização na tradição literária quanto de um conceito estético cujo elemento simplicidade se demonstra mais presente. Sendo um elemento positivo e essencial na construção da identidade desse gênero. E, ao alegar tal menoridade da crõnica, emendou que graças a Deus, pois assim ela fica mais perto de nós. (1984).
Assim, a crônica que é distante do rebuscamento e do tensionamento crítico da linguagem, assumiu lugar despretensioso de notável liberdade estética e criativa, ao permitir um contato íntimo e crítico com a realidade, investigada a partir de um olhar ao rés-do-chão.
O cronista conserva, desse modo, os estigmas negativos que cercam a figura do forasteiro, ou seja, aquele que sempre desperta a desconfiança e em quem não se deve nunca acreditar piamente e inteiramente. Vindo, sabe-se lá de onde, inspira uma admiração nervosa tal como fazemos com os mascarados e os clowns, sempre com uma ponta de insegurança, e um sorriso mal delineado no rosto. Um ser errante que nos leva a errar em nossas avaliações, em nossas suposições. Uns o veem, por isso, como um trapaceiro, já outros, mais espertos aceitam aquilo que ele tem de melhor a oferecer, a imprecisão.
Há na literatura contemporânea um sentimento que, se não chega a ser de impotência, até porque grandes livros continuam a ser escritos, é, pelo menos de vazio. O modernismo esgarçou parâmetros, derrubou os clichês, tirou do caminho o enorme entulho de rebuscamento, de formas gastas, de vícios de estilo. Depois de Kafka, de James Joyce e Marcel Proust e depois de Clarice Lispector e Guimarães Rosa, como continuar a ser um escritor? Como seguir um caminho, depois deles, se define pela fragmentação, pela dispersão, pelo vazio, exatamente como nosso conturbado mundo contemporâneo? O escritor já não pode mais conservar a antiga postura de Grande Senhor da escrita e, ele deixou de ser o mestre da palavra, para se converter no mais atencioso e dedicado aprendiz.
É verdade que a crônica machadiana já possui em seu título os reflexos de sua importância à constituição do gênero conforme o entendemos hoje. Não sem motivo que Joaquim Ferreira dos Santos utiliza "O Nascimento da Crônica" para ilustrar o início do percurso histórico em sua coletânea chamada "As vem melhores crônicas brasileiras"(2007).
Deve-se considerar que Machado de Assis não comentou o nascimento e a natureza da crônica enquanto mero observador externo, mas sim, como parte integrante de seu mais íntimo surgimento e gradual constituição.
Como um dos pensadores iniciais da crônica, Machado chegou a classificar o folhetim como mero estrangeirismo em primeira instância (Meyer, 1992), mas com grandes possibilidades de aclimatação aos sotaques brasileiros. Em geral, Machado se constituiu como relevante autor no desenvolvimento histórico, temático e estilístico do gênero, com a publicação de diversas crônicas e comentários que debatiam a própria natureza desse tipo de texto meio jocoso e sério de origens incomuns, vindo de uma imprensa particularmente folhetinesca, e só preocupada com os lucros.
"O Nascimento da Crônica", portanto, na qualidade de crônica-comentário de jaez metalinguístico, se configura como material interessante para estudo da crõnica em seus primeiros dias, a expressar suas preliminares estéticas, seus dilemas entre a ficção e o relato e, ainda, entre o humor e a seriedade. A crônica, em questão, sintetizou de certo modo uma proposta de realização do gênero, cujas influências ainda fortemente reverberam em composições contemporâneas.
Aliás, a crônica machadiana se iniciou numa reflexão quanto aos objetos de interesse do gênero, isto é, a síntese do olhar do cronista. E, a resposta despretensiosa, a partir da trivialidade de algo tão tolo quanto afirmar: "Que calor!" E, a conjecturar sobre o clima da cidade e o comportamento humano.
Em princípio, Machado de Assis aparentou reduzir a crônica ao mero conceito de sua classificação de fazer algumas conjecturas acerca do sol e da lua, outras tantas sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis e, La glace est rompue (o gelo está quebrado) eis que está começada a crônica. (Assis, 2009).
E, um leitor pouco atento poderia até afirmar que a partir dos primeiros parágrafos do texto machadiano que a crônica obteve a categoria de resumir-se à trivialidade, ao comentário jornalístico pouco importante, à posteriormente, ser mencionada em conversa entre vizinhos e vizinhas, constituindo assim num mero reprodutor de discurso acrítico do mundo.
No entanto, a grandeza do texto Machado de Assis e de toda boa crônica está justamente no irônico, no humorístico tratamento dado aos temas mais sérios e pesados, elementos que foram responsáveis pela amplitude popular do gênero. Machado encontra a crônica na naturalidade com que duas vizinhas conversavam sobre o calor há séculos atrás e, inconscientemente inventam este gênero natural, ao passo que expressa de modo antitético-complementar, a própria natureza estética e literária da crõnica que nos permite a construção metalinguística.
A naturalidade crônica do referido gênero se expõe pela composição textual, e sua estética despretensiosa e presente na criação da crônica brasileira que vai do chiste ao gravame mais contundente de ideias bizarras tão frugais nos territórios da política, economia e culturais.
O processo de elaboração onde o cotidiano e o popular são mobilizados em um conteúdo de ampla abertura temática frente ao sem relevância de sua superfície aparente. Em uma crõnica sobre crônicas, caracteriza-se, no primeiro plano do comentário de Machado de Assis, o gênero em sua aparente simplicidade e, em seu tema frívolo pouco importante, passo que se propõe ao exercício metalinguístico de implícita demonstração das dimensões de elaboração do gênero, cuja estética não somente existe, como está muito empregada no movimento que oscila entre o jocoso e o sério realizado no texto.
O procedimento da crõnica de Machado se explicita ainda mais depois dos cinco primeiros parágrafos, em que uma história narrativa se insere em um rompimento com o tom de comentário anteriormente evidente. O comentário, ao galgar os ensejos filosóficos, passa a se dedicar a um exemplar narrativo, em que o narrador descreve um enterro e os homens quee lá trabalhavam sob intenso calor.
Portanto, o texto se desenrola para a temática de um flagrante observação da realidade social, um retrato do cotidiano desigual, colocado e articulado a partir de um conteúdo aparentemente frívolo como um comentário sobre o clima. Na crônica de Machado de Assis é notável como o trapo do cotidiano, reunindo em um fragmento crônico, expande-se gradualmente à problemática das relações entre a vida, a morte e o trabalho, sem qualquer exposição sociológica e panfletária excessivamente evidente.
Como autêntico cronista, e um dos primeiros, Machado de Assis expressou o próprio procedimento da crônica e o potencial desse olhar diante do cotidiano, do humorístico e do popular. Assim, aqueles que encontram no texto de chamado a tentativa de diminuir sua própria prática como aparenta expressar em um plano de superfície.
O texto realizou, pelo contrário, um movimento de demonstração do que há de melhor na crônica: a capacidade de, a partir do mais frívolo comentário cotidiano, alfinetar a superfície do discurso, expondo ao leitor desapercebido do mundo, rápida e imprevisivelmente, uma amostra das históricas e sociais problemáticas patentes, invisibilizadas pelas imbricações diárias.
Valoriza-se o cotidiano tanto quanto a conversa com vizinhos e conhecidos, em linguagem simples, popular e acessível e, até mesmo um tom de tamanha naturalidade entre a comédia e o sério que parece conceder ao gênero um ar de que, no final das contas, ele sempre existiu.
Em outro e mais relevante plano, porém, o texto supera a reprodução do discurso burguês e o paradigma da naturalização dos hábitos comuns, atropelando o leitor que, distraído, pensava atravessar uma confortável e humorística crônica sobre o clima ou sobre o eclipse solar.
Enfim, Machado pareceu exclamar a capacidade narrativa ficcional do gênero e sua necessária tomada de consciência a partir de um cotidiano apenas "aparentemente" natural.
A crônica se apropria de características de todos os outros gêneros, essa desejará ser o resultado desse caldeirão de influências, métodos e possibilidades estético- criativas, assim a crõnica desejará ser crônica. E, a partir da trivialidade, há um escopo de projeção intelectual e crítica, não é a existência desse tratamento do sério que torna o gênero literariamente relevante. Afinal essa característica de grandes crônicas e cronistas, a partir da maior abertura temática analítica.
O tratamento de investigação das relações estéticas e críticas com a realidade foi transposto à crônica a partir de outros gêneros, quase sempre sem grandes adaptações ao olhar analítico. É patente, portanto, o modo como a influência de outros gêneros se introduz na crítica da crônica, respaldando sua descaracterização.
O texto de Machado opõe-se à essa abordagem ao avaliar, acidentalmente ou não, a crônica em sua dialética da proximidade popular em relação à criação estética e crítica a partir desse próprio conteúdo banal, a valorizar o gênero em sua complexa e versátil expressão do comentário, do humor, da digressão filosófica e até mesmo da narrativa.
Frequentemente, é o relato do cotidiano que reflete, em instâncias indiretas, a expressão de algum tema social, de uma percepção cotidiana, de m olhar cronístico que não necessariamente perquire uma significação crítica implícita em um cotidiano, a partir do tratamento concedido na volatilidade de cada cronista. E, se o ponto de partida da crônica é, necessariamente, o frívolo, seu procedimento de concepção sempre será distinto dde gêneros cujo princípio esteja localizado nas instâncias de objetos tidos como mais nobres. Embora se encontre com grandes temas, a crônica não os assume como objetos primários.
Atinge-os sempre por meio de mediação singular, elevando a crônica ao status de gênero único: aproximado do popular, tão inteligível quanto o bate-papo de vizinhas de Machado, mas capaz de colocar em jogo as relações e discursos usualmente vinculados a esse cotidiano, exigindo do cronista um eminente procedimento de composição e manipulação da linguagem e dos discursos que atravessam a vida.
Antonio Candido (1984) quando da percepção dessas tendências de busca pelo estritamente "sério" na crítica à crônica, argumenta que pode dizer as coisas mais sérias e mais empenhadas por meio do ziguezague de uma aparente conversa fiada. E, igualmente sérias são as descrições leves e alegres da vida, feito um relato caprichoso de fatos, e o desenho de certos tipos humanos ou mero registro daquele inesperado que surge subitamente.
Por ser entendida e avaliada por tais particularidades, a evitar a nociva comparação direta ou procura por procedimentos inerentes de outros textos, cujos processos de recepção visam a criação estética que tanto a diferencia. Antonio Candido já expressava certa preocupação em avaliar a crônica enquanto crônica, como aquilo que ela deseja ser em suas próprias proposições de reflexão sobre o mundo cotidiano sem ser uma reprodução mecânica desse universo.
Na crônica "O Cronista é um Escritor Crônico" de autoria de Affonso Romano de Sant'Anna que fez um relato autobiográfico, sobre um tema muito pessoal, retomando aparentes lembranças de quando e como começou a escrever crônicas.
Trata-se de rememoração aparentemente confessional, descreve que tinha apenas os seus dezesseis ou dezessete anos quando sua crônica foi publicada no jornal, o veículo tradicional do gênero desde o início. E, 1984 foi convidado a substituir Carlos Drummond de Andrade no Jornal do Brasil, tornando-se a partir daí cronista sistemático e, portanto, escritor crônico.
Desse modo, encontramo-nos diante de uma crônica cujo eixo temático se desloca da crônica em sua característica volátil, diversa e de expressão dialética (desnaturalização das relações aparentemente naturais), elementos analisados na anterior discussão sobre o texto de Machado de Assis, para uma crônica em sua íntima relação com os meios imediatos-materiais e, mais intensamente, da crônica frente à própria entidade que sobre ela medita e a escreve: o escritor cronista.
Além desse horizonte, em um extremo exemplo da volatilidade da crônica, Affonso Romano de Sant’Anna não comenta sobre o escritor, a crônica e o jornal a partir de uma externa perspectiva ou de maneira estritamente metalinguística, em que o texto em si comente a prática. Aqui, o comentário metalinguístico se conjuga com uma dimensão autobiográfica, em tamanho grau de presença que parece evocar, no âmago da significação, um tom de “não criação”, de um mero e indigno comentário – a despeito de seu notável movimento de digressão sobre as significações.
E, se o teor metalinguístico das crônicas é causador, por si só, de problemas de crítica já mencionadas e capazes de desdobrar-se em interessantes observações sobre o gênero, a inserção de teor biográfico parece elevá-las ao extremo.
No texto de Romano, o subjetivo e o autobiográfico não surgem a partir de um comentário de rodapé, tampouco por um ensaio filosófico ou por um relato estritamente pessoal, mas sobretudo pela distinta expressão da crônica (essa definição não-definição), em constante dificuldade de identificação e reconhecimento em suas expressões mais periféricas à tradição.
As problemáticas críticas de “O Nascimento da Crônica”, de Machado de Assis, agravam-se em crônicas como as de Romano, em que mesmo um viés não-comparativo, próprio da crônica em suas particularidades, parece conceder o estigma de texto não-criador – leia-se, não necessariamente literário.
No texto de Machado de Assis, a crônica sobre a crônica busca, de forma similar, responder parte desses dilemas, refletindo sobre concepções desse complexo e polêmico gênero “nacional” a partir de sua própria e contraditória prática. Em sua metalinguística reflexão sobre o escritor do gênero, Affonso Romano de Sant’Anna promove outro jogo de significações entre palavras: entre o conceito de estilita e estilista.
In litteris: "Estilita era o santo que ficava anos e anos em cima de uma coluna, no deserto, meditando e pregando. São Simeão passou trinta anos assim, exposto ao sol e à chuva. Claro que de tanto purificar seu estilo diariamente o cronista estilita acaba virando um estilista. O cronista é isso: ‘fica pregando lá em cima de sua coluna no jornal’” (SANT’ANNA, 1998).
Romano projeta o cronista como aquele que, de tanto escrever e se exercitar diariamente na escrita do simples, adquire um estilo próprio a partir de um olhar banal sobre um mundo caótico. Para Romano, o cronista é um estilita em seu sentido mais extensivo, cujo estilo se constrói “cronologicamente” no interior desse gênero tão volátil quanto problemático em sua definição teórica.
O estilo, nesse sentido, não define apenas modos de se escrever, mas a maneira particular de, exposto ao sol e à chuva, observar o mundo banal e dele retirar seu conteúdo substancial de observação da realidade – em prática análoga ao que Benjamin (2008) chamaria de exercício do crítico trapeiro, o sujeito que, em contato com o cotidiano e ciente dos perigos de, no mergulho do presente, apenas reproduzi-lo acriticamente, lança-se ao andar solitário em busca da projeção de um olhar para o âmago da realidade no mosaico de suas contradições (ler prefácio de Los Empleados, cuja reflexão de Benjamin sobre Kracauer inspira a presente analogia com o sujeito-cronista).
O cronista então representa nessa acepção um olhar estético sobre o cotidiano banal que atravessa as aparências para tingir e alfinetar, pela perspicácia do humor, as aparências ideológicas que naturalizam os absurdos da realidade social. Na expressão de um caráter autobiográfico, o cronista, nas palavras do autor pode e deve falar na primeira pessoa sem envergonhar-se.
Seu eu, como o do poeta é um eu de utilidade pública (Sant'Anna, 1998), daquele que, pelo íntimo contato com o mundo, coloca-se a ressignificá-lo pela exposição, muitas vezes humorada de suas problemáticas internas e históricas. Não se torna menos ou mais estético/valoroso o contato da crônica com o público.
O escritor crônico, insere-se declaradamente no centro da atividade de catar cacos do cotidiano na composição de mosaicos da realidade em perspectiva.
Na reflexão metalinguística de Romano de Sant’anna, observa-se uma tentativa de definir a posição do cronista diante da realização dessa expressão tão diversa: “o cronista deve estar encharcado do seu tempo, do tempo em que vive, mas ao mesmo tempo pairar acima dele” (SANT’ANNA, 1998, p. 1), destacando a necessidade de, a despeito do contato imanente com o mundo, não o repetir em seus valores de face.
Esse exercício de humorada coleta de trapos discursivos da cultura de massa, sem o desprezo característico do “hábito” intelectual e seus dilemas de grandeza e autopercepção, é capaz de produzir, na crônica, dimensões estéticas do cotidiano que, em alguma medida, refletem um olhar crítico e dialético das relações históricas, mas jamais as encerra, limita ou decorre numa consideração generalizante do mundo – evitando uma noção sistêmica positivista.
Embora se encontre em distintas realidades de publicação material, a crônica parece subsidiar ainda mais espaço em sua volatilidade singular, cujos gomos são postos ao consumo e análise nos mais variados ambientes, de uma sala de aula em que crônicas perenes, como a de Machado de Assis, sobrevivem na expressão; até nos meios digitais, em que crônicas do cotidiano desaparecem em provocações que, a despeito de eventuais sorrisos, cutucam e provocam percepções de mundo dos leitores.
Doces ou azedas, ficcionais ou biográficas, narrativas, ensaísticas ou poéticas, as crônicas aparentam sobreviver em um mundo cuja proximidade com a realidade se apresenta ainda mais fragmentária, tornando o exercício cronístico de olhar o mundo a partir dele mesmo, para além do absurdo normalizado, provavelmente mais importante do que nunca.
A crônica de Romano de Sant’Anna se apresenta como uma obra que tensiona, pela improvável via do humor, as possibilidades versáteis dessa página em branco da própria crônica, a explorar seus desdobramentos entre o comentário, o relato, o poético-subjetivo, o ensaio e o narrativo, ao passo que implicitamente busca apresentar o que é, afinal, o cronista: um escritor livre das pretensões da tradição e da séria subversividade literária, materializando esse singelo desejo de ser cronista, de escrever crônicas que, de maneira alguma, desejam ser outras coisas.
"A Última Crônica" revela a mais alta versatilidade da crítica. Pontuou-se a necessidade de um olhar não comparativo, que considere a crônica em sua singularidade estética volátil – mesmo em procedimentos extremos de observância aparentemente despropositada desse mundo social banalizado.
Buscou-se encontrar, nas crônicas analisadas, perspectivas de análise e valoração da própria crônica, em um exercício meta-analítico que procurasse apontar compreensões do procedimento da crônica imanente, enquanto texto estético; e do escritor cronista, enquanto indivíduo que, explorando o dia a dia, sintetiza uma dimensão particular sobre os impulsos inconscientes do mundo.
No horizonte de possibilidades desse gênero volátil e tão íntimo de seu mundo interior e exterior, referenciou-se a capacidade do gênero de expressar temas e tratamentos que caminhavam desde o relato cotidiano à ficção, do eu ao outrem e do humor de superfície à crítica ensaística.
É evidente que existem más, boas e excelentes crônicas. No ínterim desse campo tão vasto e versátil do gênero, esta seção se dedica analisar uma crônica cujo valor estético se mostra interessante interna e externamente: “A Última Crônica”, de Fernando Sabino. Internamente porque, diante do entendimento de uma crítica da crônica não comparativa, essa obra apresenta um riquíssimo panorama da versatilidade do gênero e da capacidade expressiva decorrente desse universo de possíveis – a partir de um paradigma da crônica em face do mundo.
A obra em questão conjuga parte das discussões levantadas neste trabalho: no interior de um olhar metalinguístico ao cotidiano, projeta-se um texto que, ciente das problemáticas de seu gênero, lança-se ao exercício crítico do mundo e ao impacto dessa exposição à recepção.
Aparenta, em um primeiro momento, tratar-se de uma obra muito banal, na qual o escritor de crônicas, assim explicitado, descreve sua ida ao cotidiano botequim e lá começa a ponderar sobre as dificuldades de, como cronista – ou, como temos associado, como trapeiro do cotidiano – encontrar inspirações a uma última crônica, cujo valor significativo seria representativo desse particular olhar sobre o mundo.
Aliás, o teor metalinguístico de Affonso reitera a visão de Candido quanto ao procedimento do cronista que, por meio de sua expressão legitimamente é estética e estilística. Por isso mesmo consegue quase sem querer transformar a literatura em algo íntimo com relação à vida de cada um, e quando passa do jornal ao livro, nós verificamos meio espantados que a sua durabilidade pode ser maior do que ela própria pensava (CANDIDO, 1984).
Como a crônica se dá em um contexto cuja notícia do hoje já está ultrapassada? Apesar de profundos impactos na imprensa tradicional, a crônica e os cronistas permanecem, ocupando um lugar único frente aqueles que ousam enfrentar e significar o mundo de frente, juntando os fragmentos mais episódicos. Affonso Romano de Sant’Anna, em menção a Carlos Eduardo Novaes, diz que “as crônicas são como laranjas, podem ser doces ou azedas e ser consumidas em gomos ou pedaços, na poltrona de casa ou espremidas na sala de aula” (SANT’ANNA, 1998, p. 1), em uma versatilidade que se mostra não somente inerente ao procedimento, como também pertencente ao horizonte receptivo no qual as crônicas, efêmeras em propósito, tornam-se perenes em significância.
Essa intimidade com o mundo, mencionada por Candido, não somente constitui uma atribuição de valor crítico ao gênero, como reflete a busca por entendê-lo em seus princípios de composição e expressão próprios – e não meramente comparativos. Na compreensão do procedimento literário da crônica em sua intimidade com a vida, com o cotidiano e até com quem a escreve, é possível encontrar valor crítico e estético nas reflexões metalinguísticas da crônica de Romano, ainda que tão expositivamente confessionais, revelando partes de um mundo caduco.
A obra em questão conjuga parte das discussões levantadas neste trabalho: no interior de um olhar metalinguístico ao cotidiano, projeta-se um texto que, ciente das problemáticas de seu gênero, lança-se ao exercício crítico do mundo e ao impacto dessa exposição à recepção.
Aparenta, em um primeiro momento, tratar-se de uma obra muito banal, na qual o escritor de crônicas, assim explicitado, descreve sua ida ao cotidiano botequim e lá começa a ponderar sobre as dificuldades de, como cronista – ou, como temos associado, como trapeiro do cotidiano – encontrar inspirações a uma última crônica, cujo valor significativo seria representativo desse particular olhar sobre o mundo.
Como já mencionado, esse tom de casualidade e de banalidade da ação narrativa não deve ser entendido como elemento denunciador de ausência estética, mas sobretudo como o próprio projeto estético e expressivo da crônica, propositando essa aproximação singular do gênero daquilo que, na superfície da vida moderna, soa tolo e insignificante aos grandes movimentos.
A crônica nos apresenta, em seguida, o aspecto metalinguístico denunciado em seu título: aquele que entra em um bar é um cronista, adiando o momento de escrever e, paradoxalmente, escrevendo sobre a própria ausência de inspiração e anestesiamento do mundo em seu curso “comum” aparentemente naturalizado.
O uso da primeira pessoa aliado à mobilização estética da crônica estrutura um texto cuja recepção caminha a uma confissão de relatos mentais desse declarado narrador – confundido com o próprio Fernando Sabino.
Os fragmentos soam como registros quase confessionais dessa figura “crônica” que se declara marcadamente, ao passo que implicitamente estrutura significações universais – ou seja, que superem o paradigma do meramente confessional e apresentem algo de significativo a respeito do mundo em processo de representação estética.
Sabino parece estruturar, portanto, um texto cujo paradoxo demonstra a própria versatilidade da crônica e seu lugar (in)comum, situado no duplo entre o exterior, que é visto, percebido e explicitado; e um eu-cronista que, marcadamente, coloca-se como leitor desse mundo, em busca de sua depuração.
Revela-se, metalinguisticamente, no âmbito do pessoal e da proposital “estruturação” de verdade biográfica, o procedimento desse bom cronista: ao olhar para fora, a crônica se desloca em termos de narração.
De certo modo, o simples movimento de transição do metalinguístico-interno estrito ao narrativo-exterior do cotidiano revela – em uma simplicidade estética que soa, na recepção, aparentemente “natural” – a grandiosidade da liberdade da crônica, capaz de transitar entre diferentes instâncias do literário, ou melhor, flutuar entre as inúmeras possibilidades de artifícios e abordagens de outros gêneros.
Embora se comporte e, na prática, seja de fato uma história ficcional, a narrativa que se inicia a partir do olhar externo não possui os ensejos de um conto ou de um romance, embora compartilhe com esses gêneros princípios comuns da narrativa.
Em última instância, a crônica de Sabino, ciente da particularidade da crônica em relação ao objeto do cotidiano, sob intensa zona de contato, tensiona ao limite as noções categóricas de ficção, realidade, relato, autoria e verossimilhança – nesse que se faz claro movimento estético, capaz da problematização simbólica da linguagem, do mundo e de si mesmo.
De certo modo, esse arriscado movimento de aparente relato factual, seguido de sua negação e reelaboração, esbarra na dificuldade de estabelecer consensos e acepções estéticas da crônica, ao passo que também constitui aquilo que torna a crônica particular: essa complexa e aparentemente casual indução de proximidade – ponto de partida do escritor trapeiro da vida.
À recepção de um mundo anestesiado pelo absurdo, o peso crítico do mundo-crônico surge nessa imprevisível sugestão sensível evocada pelo aparente relato.
O impacto desse aspecto social não ocorre por uma exposição explícita ou climática: narra-se um sincero e, ao universo burguês, estranho momento de felicidade reprimida de um grupo excluído dos privilégios, cuja empatia – não piedosa – preenche as perspectivas do cronista, abrindo espaços temáticos à reavaliação dos paradigmas da realidade.
Em um plano geral, reforçou-se como a crônica se configura enquanto gênero volátil, versátil e eminentemente artístico, cuja estética de aproximação e depuração do mundo cotidiano constitui fundamento.
Evidenciou-se, nas obras, a presença de múltiplas mobilizações literárias a serviço de efeitos particulares da crônica em sua expressão popular e crítica frente ao cotidiano. Colocados em tensão, os textos analisados em suas próprias “práticas metalinguísticas” participaram do debate evocado, não somente na observação de seus elementos constitutivos, como também em suas próprias expressões das possibilidades “crônicas” desse gênero versátil.
Referências
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