Cultura sob o viaduto
Próximos à minha casa existem dois viadutos para que se possa atravessar sob a BR 101. São muito usados por minha família nas idas e vindas da vida. Notei que apareceu um pedinte, esmoleiro, paupérrimo mendigo, sob um deles. É jovem, imberbe, não aparenta ser o que demonstra. A cama, um cobertor maltrapilho. Passei devagar e, ao lado dele, notei alguns livros, uns sobre os outros.
Fiquei admirado. No dia seguinte, quando os raios solares já se dissipavam, ele lia um jornal.
Criei coragem e passei a carregar no carro um dos livros escritos por mim, para presentear-lhe se estivesse por ali.
Semanas se passaram e ele desapareceu. Muito dias depois, lá estava de volta o mendicante (fica mais culto com esse nome). Estacionei o carro a alguns metros do local com meu livro “Panela de Crônicas” sob o braço e fui ao seu encontro.
Cumprimentei-o e perguntei se ele gostaria de ganhar um livro de minha autoria. Com os olhos brilhantes, disse que ficaria muito contente e agradecido. Estendi-lhe a mão, entreguei-o e acendi um cigarro. Ofereci um, que aceitou de pronto.
Conversamos. Ele contou que passou a fazer uso de drogas e foi expulso de casa. Lia muito durante a adolescência e sempre que arrumava algum dinheiro ia a um sebo e comprava um livro. Não roubava. Havia parado de usar estupefacientes, mas tinha vergonha de voltar para casa.
Pedi licença para ver os livros que dormitavam ao seu lado.
Encontrei Ferreira Gullar, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, João Guimarães Rosa, José de Alencar e Clarice Lispector. Dentre os estrangeiros: Fiodor Dostoiévski, Albert Camus, Shakespeare e Agatha Christie. Lembro-me dos títulos de alguns deles: Barulhos, O alienista, Claro enigma, Primeiras estórias, O idiota e O conto do inverno. Depois de uma semana entreguei a ele meu segundo livro e, uma semana depois, o terceiro. Levei para ele mais alguns livros em troca de alguns que ele possuía. Aceitou e, ao firmarmos a mão em respeito, confessou:
- Meu amigo, você em algumas crônicas deixou-me, sem querer, um recado: “Volte para casa. Volte para os seus. Eles ficarão contentes. Eles são a sua vida”. É o que farei. Um dia nos encontraremos por aí e espero que eu não sinta mais vergonha de viver a vida.
Aroldo Arão de Medeiros
08/03/2017