Genealogia e memória de uma família.

Genealogia e Memória de uma Família

Neomísia Antônia de Sousa

Organização: Adalberto Antônio de Lima.

Picos, Piauí, 10 de fevereiro de 2006.

Edição partticular. TODOS OS DIREITOS REVERSADOS. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida sem autorização do organizador.

Dedico a meus pais Antônio Benedito de Lima e Antônia Josefa de Sousa Lima, (in memoriam), a meu sobrinho Rômulo Sousa Rodrigues (in memoriam) que como as rosas, perfumaram, embelezaram nossas vidas e se foram muito cedo. Dedico também ao mano Adalberto, amigo e colaborador que me indicou gentilmente a necessidade de reestruturar textos, oferecendo plausíveis sugestões. E ainda, a todas as pessoas que, com incentivos, sugestões e críticas tornaram possível o lançamento de meu primeiro livro.

Com licença

Padre Virgílio,

preciso divulgar

sua mensagem.

“Nem toda vez que pede licença para entrar no mundo, a vida encontra acolhida incondicional.

E é sempre Deus que se encarrega de sugerir aos casais respeito e amor pela vida prestes a nascer. Se bem que não raros, os casais se fazem de surdos, egoístas e partidários do aborto e da morte.

O anúncio de uma vida humana a caminho de nosso lar é mais maravilhoso do que a promessa de nova aurora, de novo sol ou de novo mundo, mas que direito tem o ser humano de apagar a aurora, de encobrir o sol, de destruir a vida?

O nascimento de uma criança é novo nascimento de Deus em nosso meio, é a presença dele a se tornar visível aos nossos olhos de carne, a nos lembrar que sua maior alegria consiste em estar com os filhos dos homens. Mas que direito tem o ser humano de aprontar outra vez a cruz e o sepulcro para o seu Deus?

Não tenha medo, pois de receber a vida nova que pede para entrar em seu lar. Nem tenha receio de fazer sentar à sua mesa, ainda que pobre, uma nova presença saída do coração de Deus. Fique sabendo que, essa nova presença traz o próprio nome de Jesus, pois é sempre Jesus de Nazaré a nascer entre nós para libertar nossos lares do egoísmo, da tristeza e morte certa.

Se você deixar a voz do amor gritar mais alto que a voz do “calculismo” se permitir que o clamor da vida abafe os clamores da morte, então poderá contemplar o rosto de Deus no rosto da nova criaturinha. E será para você um novo Natal de Cristo e as vibrações das mesmas alegrias que ressoaram naquela noite memorável, sobre a gruta de Belém”.

(Pe. Virgílio, SSP)

Apresentação

“O livro é um amigo discreto que não se impõe a ninguém e só fala conosco quando temos vontade de conversar com ele”

(Pastorino, 2000, p. 250).

As memórias catalogadas neste livro são saudosas lembranças afloradas na mente de quem teve uma origem interiorana, longe dos ruídos das cidades grandes, da poluição e da violência, um mundo de paz e silêncio cantado e eternizado por Luiz Gonzaga: “...sem rádio e sem notícia das terras civilizadas...” É para este mundo fantástico, maravilhoso e quase utópico, que Neomísia nos conduz através de seu livro.

Nesse sentido, apresentar sua obra, Genealogia e memória de uma família, parece desnecessária redundância já que a autora discorre sobre si mesma, sem esnobismo, com muita simplicidade e sabedoria. Além disso, relata a história de sua vida com abundância de informações e dá umas “pinceladas” na biografia da família.

Descrevendo os reisados, não deixou passar desapercebida a figura folclórica de nosso primo Mariano Inácio de Loyola, o “Lolóia”, cujo nome de registro era, na verdade, Mariano Inácio da Silva.

Ao falar de sua infância e da vida no campo, recordou-se das codornizes, das arapucas e das festas do padroeiro. Também não ficaram fora as cirandas, cirandinhas, cantigas de roda e o casamento chinês. Bem como o mel de engenho, a rapadura e a farinhada na casa do avô Mariano, expressados nas palavras da autora:

“As farinhadas eram por demais animadas, os primos se ajuntavam em volta do amontoado de mandioca, disputando quem raspava mais. Os homens faziam girar a bandoleira, prensavam, peneiravam a massa e torravam a farinha. A mulherada raspava a mandioca que era empurrada pelo banqueiro na boca do caititu... Tudo se fazia cantando, com isso, o serviço pesado parecia mais leve”.

Mas esta obra não é apenas uma autobiografia, é antes de tudo, um rico banco de dados, uma excelente fonte de pesquisas. Isso porque Neomísia fez questão de oferecer às novas gerações o conhecimento da história de seus ancestrais e ainda registrar fatos históricos da emancipação de seu torrão natal, o povoado Santo Antônio.

Nos seus setenta anos de idade, considera-se realizada por ter conseguido alcançar todos os objetivos que escolheu como meta para conquistar na vida, de modo que, se a mãe natureza não lhe foi prodigiosa concedendo-lhe um filho das entranhas, Deus o fez ao lhe dar uma plêiade de sobrinhos sobre os quais lança “um olhar de Mãe-Duca”.

Otimista, revela ainda a trajetória de sua vida como incentivo, principalmente às mulheres, mostrando que a vitória é acessível a todos que lutam com afinco, dignidade e determinação.

Com esta autobiografia, Neomísia resgata a memória de seus antepassados, inscrevendo-a numa pedra.

Adalberto Antônio de Lima

1. O clã mariano, vida e história de uma família.

A nossa família possui uma história muito interessante. E para entender como se deu o processo de construção dessa genealogia se faz necessário alguns esclarecimentos. O clã Mariano teve início ainda no século XIX, com o seu nascimento de Mariano Joaquim da Silva, em 22/10/1877.

Meu avô, Mariano Joaquim da Silva, casou-se com Josefa Maria e teve doze filhos, dentre eles minha mãe. No entanto, quisera Deus que ele ficasse viúvo.

Minha avó Delfina Francisca de Lima casou-se com Benedito Alves de Lima, que veio a falecer tempos depois. Dessa união nasceu Antônio Benedito de Lima, meu pai e filho único do casal .

Assim, Mariano e Delfina , que eram viúvos, contraíram matrimônio e tiveram mais três filhos:

Maria Francisca de Lima, Maria Floripes e Pascoal Joaquim da Silva.Poratanto, Delfina era madrasta de minha mãe

e Mariano, padrasto de meu pai. Quando meu pai se casou com minha mãe, meu avô passou a ser sogro e padrasto de papai e minha avó, sogra e madrasta de minha mãe, de sorte que os filhos do casamento de Mariano com Delfina: Maria Francisca, Pascoal Joaquim e Maria Floripes são irmãos consangüíneos de meu pai, por parte de mãe, e irmãos consangüíneos de minha mãe, por parte de pai. São irmãos e cunhados de meu pai, e irmãos e cunhados de minha mãe, no entanto, entre mamãe e papai não há grau de parentesco.

Genealogia

Casamento de meus pais, uma vida de oração e entrega mútua

“...rezai como se tudo dependesse de Deus e trabalhai como se tudo dependesse de vós mesmos” (São Bento).

Às vezes fico imaginando como seria a mamãe, jovem adolescente, com apenas 16 anos de idade, bonita e deslumbrante, vestida de noiva. Andar seguro, olhar sincero e firme, coração ingênuo e cheio de bondade. Imagino-a entrando na Igreja, naquele dia tão singular e festivo, a sonhar com um belo porvir. Vida nova, vida a dois que lhe parecia sorrir, mas na realidade tão difícil. Tempos difíceis aqueles!

Vestida com roupagens de festa, na verdade estava se revestindo da força Divina, para iniciar uma missão: ser mãe de uma numerosa prole. Papai ainda muito jovem, na flor dos seus 23 anos, boa aparência, corado, simpático e trabalhador, formava com mamãe um belo casal.

A cerimônia religiosa aconteceu na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, na cidade do Bocaina. Ali se uniram em matrimônio assumindo o compromisso com Deus de se amarem mutuamente, criar os filhos observando os mandamentos de Deus, educando-os na fé cristã.

Firmados na fé de nossos pais fomos criados e formados católicos praticantes. Não se perdia uma festa do padroeiro Santo Antônio. Esperava-se um ano até chegar o próximo dia 13 de junho.

Minha família é de oração e tudo isso devemos à fé de nossos pais. Era difícil saber exatamente quais os seus santos de devoção porque tinham muita estima e admiração por todos aqueles de quem conheciam a vida, história e milagres. Na parede da copa se via lindas estampas de treze santos diferentes. Mamãe tinha um amor filial à Virgem Maria e papai atribuiu a uma de suas propriedades o nome de São Benedito. Tomaram para si o exemplo de São Bento: rezar e trabalhar.

Lá em casa ninguém dormia sem antes rezar o terço e aos sábados, Ofício da Imaculada Conceição. Aprendemos também com mamãe a oração do anjo da guarda, de Nossa Senhora do Desterro e outras orações diárias do cristão.

Sou grata aos nossos pais pela a vida e em especial a mamãe por nos ajudar a desvendar alguns mistérios que envolvem a vida humana. Seu útero íntegro favoreceu o desenvolvimento harmonioso e saudável dos fetos ali gerados, como se gerados fossem no colo de Deus. Com muito amor carregou em seu ventre, sem reclamar em momento algum, o peso da gravidez de 16 filhos, dos quais dois faleceram antes de completar um ano de idade. Todos nasceram de parto normal, com acompanhamento apenas de parteira.

Com muito carinho preparava o enxoval de cada filho como se fosse o primeiro e único. Engordava os frangos e estocava as garrafas de manteiga do sertão, para consumo durante o resguardo que durava quarenta dias.

Nunca fez distinção entre os filhos, embora tivesse um cuidado especial pelos menores e pelos mais fracos. Dedicou-se inteiramente à família e fez de nosso lar uma extensão da Casa de Nazaré, recanto que abrigou o menino Jesus.

Mãe, mulher abnegada, humilde de coração, mente sã; amparo dos pobres e fracos, sua modesta morda foi sempre hospitaleira. Mansa como um cordeiro, mas forte combatente na fé e oração, plantou uma semente de amor e colheu um jardim de rosas, quatorze filhos a cercavam, quatorze filhos a amavam. Assim educou sua prole com trabalho, sacrifício e dedicação, viveu mais para os outros do que para si mesma e se desgastou como uma vela que se deixa consumir no altar. Conheceu a ascensão e a queda, a alegria e a tristeza, mas em tudo viveu a vontade de Deus.

A casa de meu avô Mariano, vida, trabalho e inserção na comunidade.

Vovô Mariano, católico autêntico, lia e seguia os ensinamentos bíblicos, legando aos filhos esta virtude. Homem de estatura alta, esbelto, cabelo preto, nariz afilado e olhos azuis. Dotado de uma sabedoria invejável, foi tido como letrado e culto na sociedade onde estava inserido, pois lia, escrevia e fazia as quatro operações de contas com muita habilidade.

Professor e político respeitado, entretanto, nunca concorreu a cargo eletivo. Nas missas celebradas em latim sabia ser sacristão. Além disso, foi uma espécie de conselheiro, apaziguador. Como lembra Medeiros & Medeiros (2005), Mariano, conhecido como Mariano Grande, por causa de sua grande estatura, quando chamado a pacificar conflitos agia como se fosse um “juiz-de-Paz”, de sorte que se alguém não conseguia resolver uma questão embaraçosa dizia-se: “isso é tão difícil que nem Mariano Grande sabe...”

Meu avô construiu sua morada terrena, à margem esquerda do rio Riachão, perto da casa de seu pai Joaquim. Naquela casa de estilo rústico, cercada de árvores frutíferas, constituiu e criou sua numerosa família.

No vasto pátio da frente erguia-se um majestoso pé de tamarindo, ao lado de belos cajueiros que juntos, davam frutos, sombra e amenizavam o clima bastante quente do sertão nordestino. Ali, nos galhos daquelas frondosas árvores os pássaros teciam os seus ninhos e alegravam a natureza com melodiosos cânticos no amanhecer. No quintal, os umbuzeiros, as pinheiras, goiabeiras e romãzeiras proporcionavam a festa da criançada. Ao lado, plantas ornamentais: espirradeiras, lírio, confeito de jardim e as angélicas cultivadas por tia Floripes, completavam a beleza ambiental.

Muitos filhos de vovô Mariano moravam por perto e os netos constantemente se reuniam para brincar, fazer travessuras e traquinar nas árvores. Acontecia que ao balançarem os galhos, muitos frutos verdes caiam e se alguém reclamasse, ele falava calmamente: “Deixe os meninos desdenharem!”

Até mais ou menos 1940, quase tudo que se consumia na casa dos Marianos era cultivado pela família e fabricado em casa mesmo, desde os alimentos de primeira necessidade, até a decoada extraída da cinza de angico e que colocada no azeite de oiticica, transformava-se num excelente alvejante de roupas e material de limpeza de boa qualidade. O algodão, feito em fios, transformava-se em confortáveis tapueranas com guarnições em labirinto.

Da cana-de-açúcar se fazia o mel, a batida e um gostoso alfenim, além da rapadura destinada ao consumo interno até a próxima safra.

Na casa de farinha, também chamada de aviamento, a mandioca era transformada em tapioca e farinha, sobrando ainda a crueira que servia de excelente ração para o gado vacum, caprino e suíno. O cultivo do arroz e do feijão destinava-se principalmente à manutenção da família. Cultivava ainda, milho, batata doce, cebola e alho; da carnaúba extraia a cera para vender. O pequeno rebanho de gado fornecia leite para consumo da casa. No ano bom de chuva a pastagem crescia muito, favorecendo o aumento do leite que sobrava para fazer requeijão.

Em nosso tempo de criança os festejos de São João e as farinhadas eram muito animados.

A cada ano, no dia 24 de junho, meu avô fazia uma fogueira de lenha verde, caprichosamente arrumada na frente da casa e fincava ao lado um grande galho florido de espirradeira.

Por volta das 19:00h a família se juntava para acender a fogueira. Vinham tios e tias primos, parentes e vizinhos para comemorar a noite de São João. O fogo crepitava na madeira verde lançando centelhas que voavam alto e se apagavam como estrela cadente ao descerem.

As moças rodavam a fogueira rezando e cantando cantigas de São João. Faziam simpatias, as mais diversas, que segundo a crença popular, revelavam o futuro.

Apanhavam uma bacia com água limpa, colocavam perto da fogueira e olhavam no espelho da água, quem conseguisse ver seu rosto refletido, estaria vivo nos festejos do ano seguinte.

As solteiras e sem namorados, na esperança de descobrirem quem viria a ser seu marido, lançavam numa bacia com água duas brasas incandescentes, uma representava a pessoa que queria saber sobre o futuro e a outra seu predileto. Se as brasas se juntassem era uma confirmação de que aquele seria futuramente seu esposo.

A simpatia da aliança também usada naquela ocasião, consistia em pegar uma aliança benta, de uma pessoa que recebeu o sacramento do matrimônio, amarrar um fio de cabelo de quem queria fazer a simpatia, sobrepondo a um copo com água parada, o número de vezes que aliança tocasse o copo correspondia aos anos que ainda faltavam para seu casamento.

Os apadrinhamentos eram os mais levados a sério nessa crença popular. Os padrinhos e madrinhas de fogueira, comadres e compadres, a partir da consagração, se tratavam como tal até o fim da vida e os afilhados pediam a bênção mesmo depois de crescidos.

Os pretendentes a se consagrarem davam-se as mãos, girando três vezes em torno da fogueira, cantando:

“São João disse, São Pedro confirmou (dizia-se o nome da pessoa) vai ser minha madrinha que São João mandou.”

A madrinha segurada na mão do afilhado, dava também três voltas, repetindo o “São João disse, São Pedro confirmou (nome do afilhado) vai ser meu afilhado que São João mandou”. O mesmo acontecia com aqueles que decidiam ser compadres e comadres.

Depois que a chama arrefecia, assávamos batata doce e mandioca na brasa da fogueira e Mãe-Duca servia um chá de folha de tamarindo.

No tempo de colher a mandioca, entre os meses de junho e julho, o frio era intenso, apesar de estarmos numa região de clima quente. Ainda assim, levantávamos cedo para não perder o movimento... A casa ficava cheia, parecia uma festa; forneiro, prenseiro, raspadeira de mandioca, gente de todo jeito e idade com diversificadas habilidades em trabalhar a mandioca.

Nas farinhadas sempre muito animadas, os primos se ajuntavam em volta do amontoado de mandioca, disputando quem conseguia raspar mais.

Os homens faziam girar a bandoleira, prensavam, peneiravam a massa e torravam a farinha. A mulherada, raspava a mandioca que era empurrada pelo banqueiro na boca do caititu. Trabalhava-se cantando bonitas toadas, em moda na época:

“Olê muié rendeira, olê muié rendá, tu me ensina a fazer renda, que te ensino a namorar...”

Logo que terminava uma música, alguém já puxava outra: “Tava na penera, eu tava penerando, eu tava no namoro, eu tava namorando. A meninada descascava a macaxeira, Zé Migué no caititu, eu e ela na penera...”

Tudo se fazia cantando, com isso, o serviço pesado parecia mais leve.

No final do dia, os solteiros armavam suas redes nos esteios do aviamento e dormiam. Os casados voltavam para suas casas levando enormes e deliciosos beijus feitos no formo.

Minha avó Delfina

Delfina Francisca de Lima, segunda esposa de vô Mariano, era alta e delgada, nariz afilado e de cabelos negros. Mulher irrequieta, não gostava de ver o tempo passar sem que se ocupasse em fazer algum serviço. Nisso, reconheço que herdei alguma coisa dela: caráter, atitude, personalidade e gosto pelo trabalho.

Morávamos muito perto da casa de vovó Delfina e a visitávamos com muita freqüência. Mamãe contava que em visitas costumeiras, na hora de voltar pra casa, eu me enrolava na saia da vovó para ficar com ela.

Na época das farinhadas eu e Maria dos Remédios éramos as primeiras convidadas para raspar mandioca, lavar a massa para tirar a goma e estender nos jiraus para secar.

Divertíamo-nos muito com toda aquela movimentação: prenseiro espremendo a massa, o forneiro manipulando o rodo transformando a massa em farinha, o banqueiro trabalhava e cantava: “ Olê! Olê! Bota mandioca na banca. Na verdade, embora parecesse, não tínhamos compromisso mas agíamos como se tivéssemos.

No final do dia a vovó nos dava beiju feito no forno e tapioca para levarmos pra casa. Que festa boa!

Minha avó deixou-nos um bom exemplo de trabalho, sabia fiar o algodão e tecer bonitas redes com labirintos bordados. Caprichosa e ágil na almofada de bilros, fazia lindas e invejáveis rendas. Ficava vendo aquilo. Magnífico trabalho! O desenho que ia se formando, o som dos bilros se chocando e a velocidade com que mudava o lugar dos alfinetes me impressionava.

Certa vez, me empolguei tanto com esse trabalho artesanal que minha mãe arranjou com vovó uma almofada, os bilros, os desenhos das rendas feitos em papelão, os alfinetes e contratou uma professora rendeira para me ensinar a arte.

Não foi difícil aprender a mexer com aquilo tudo, fiz algumas rendas, bicos e enfeitei roupas, no entanto não me sentia segura ainda. Estava na puberdade e, por conseguinte, meus projetos de vida apenas se delineavam na mente, sem muita firmeza.

Em um daqueles dias em que estava a trabalhar os bilros, chega o tio Pascoal, o caçula dos tios e diz: “ Chiii... Vai ficar para titia, moça rendeira não se casa!” Arregalei os olhos grandes, castanhos e brilhantes, mirei-o como se perguntasse: “ Isso é verdade ou brincadeira? Moça rendeira não casa!”

Ele não percebeu minha reação. Não disse mais nada e se retirou. Então pensei: Fazer renda é bom, mas ficar para titia não está em meus planos. Naquele mesmo dia desisti de ser rendeira. Devolvi a almofada, os bilros, alfinetes e os desenhos sem explicar o motivo que até hoje era segredo meu.

Edwiges, minha tia e madrinha.

Os mais velhos tinham o costume de atribuir a seus filhos o nome de santo do dia, do mês ou da devoção. Com “Mãe-Duca” foi por causa da devoção, visto que seu nascimento, 17 de setembro, não coincide com as celebrações de Santa Edwiges, 16 de outubro, de quem herdou nome e virtudes.

Assim, como a santa, ela viveu plenamente as quatro dimensões da graça santificante: amou o mundo, a si mesma, ao próximo e a Deus... Viveu mais para os outros do que para si mesma. Mulher de muita fé, muita esperança e caridade. Em tudo se assemelhou a Santa Edwiges definida por Montanhese (1989), à exceção da riqueza e do matrimônio. Não foi uma pessoa abastada mas a Providência Divina nunca lhe deixou faltar o necessário, enquanto militava na vida terrena.

Por opção, nunca se casou, sua alma pura e recatada viveu a castidade até à morte. Muito amada pela família era também, querida pelo povo da redondeza, de sorte que, se alguém queria evidenciar suas virtudes a chamava de Duquesa, em alusão à Santa Edwiges que fora Duquesa de Silésia e Polônia no século XII.

Tia Edwiges foi de fato uma verdadeira mãe, uma santa do céu peregrinando na terra. O modo como a chamávamos, revela quanto era querida e amada. Esse tratamento carinhoso, ultrapassou as barreiras do convívio familiar, passando a ser conhecida também lá fora como “Manduca”, uma formação vinda do apelido “Mãe-Duca”.

Foi mãe espiritual de muitos filhos, embora não tenha sido mãe biológica de nenhum. Ninguém jamais cuidou tão bem de uma criança igual ela, porquanto, mãe e avó de muitos. O bebê que dava banho tinha um cheirinho diferente...As fraldinhas, assim como a demais roupas que lavava com sabão de oiticica, estendendo-as no quaradouro, exalavam perfume, como se perfumadas estivessem.

Fez-se serva, amiga de todos os filhos que mamãe ganhou. Caprichosa no que fazia, sua comidinha era muito gostosa. Em tudo que tocava transmitia amor.

Em suas horas de folga matava cafuné em mim, contava histórias bíblicas ou de Trancoso, até me fazer dormir. Madrinha de crisma, conduziu-me na fé cristã, cumprindo com o dever assumido de evangelizar os afilhados.

A mamãe a amava muito, já que fora mãe dela, quando de sua orfandade na mais tenra idade. Sua mão pobre sempre teve algo para dar. O coração cheio de amor resplandecia e agradava qualquer criança que viesse a seu encontro. Fosse parente ou não, ela agia como Jesus: “Vinde a mim as criancinhas”.

Em sua casa, aquela redinha feita de algodão, branca e reconfortante! Rede que ela mesma fazia com seu próprio punho. Armada em seu quarto escuro, de barro batido, tinha o gosto e o conforto de uma rede tapuerana. Mais confortável que se estivesse num quarto de cerâmica arejado e com belas janelas, porque ali se sentia paz.

Ela tinha algo especial em seu olhar. Olhava com suave profundidade, transmitindo segurança e paz. Seu olhar parecia alcançar nossas almas, enchendo-nos de amor e doçura, como se uma chuva de bênçãos fosse derramada sobre aqueles que se aproximavam dela. Fiel a Cristo não se desviava um triz, nem para a direita, nem para a esquerda. E pelo seu pudor tamanho, não quis sequer casar, mesmo não considerando isso um pecado, preferiu se entregar por inteiro a Deus, através do semelhante.

Não me canso de repassar como em um filme aquele oratório aberto na parede, cheio de imagens de santos de sua devoção, enfeitado com flores silvestres, lírio, jasmins e espirradeiras, colhidas no quintal da casa, supria a falta da capela que não existia nas imediações.

Na casa de “Manduca”, o beiju de tapioca branca, feito na panela de ferro e servido no café da manhã tinha mais sabor do que qualquer guloseima produzida em confeitarias. Depois do almoço ou à tardinha a ata (pinha) amadurecida em casa, tinha gosto de flor, as castanhas de caju assadas na brasa, os umbus, o gergelim eram como se fossem as melhores iguarias.

Como causava prazer dormir no quarto dela e acordar ao amanhecer com o canto dos passarinhos nos cajueiros, tamarindo e umbuzeiros que ficavam em volta da casa!

Longos anos já se passaram e o tempo - agente transformador de muitas coisas – modificou a paisagem bucólica do torrão onde nasci. Muitas árvores não resistiram à falta da presença humana e morreram. Aprenderam a conviver conosco e sem nossa presença não sobreviveram. Outras, porém, foram golpeadas a machado por mãos que antes não tivessem passado por lá.

Minha “Mãe-Duca” voou para o céu, indo morar com Deus, mas a gratidão por tudo que um dia ela nos fez, fica aqui eternizada nestas páginas singelas. Agora, na presença de Deus, colhe o amor que semeou na terra.

Tio Cândido, as tiradas de Candinho.

Um dos filhos mais velhos do primeiro casamento de Mariano, o terceiro de uma geração de doze filhos, era também o mais abastado. Casou com Luíza de Sousa Rego, Luizinha de Candinho, viúva pobre e sem filhos, que o ajudou muito na consolidação do patrimônio familiar.

Construiu sua casa no espaço entre a nossa residência e a morada de meu avô Mariano, a uma distância não superir a 200 m, de tal modo que se ouvia o badalar de seu relógio de parede a pingar as horas, pontilhando o tempo, no silêncio e quietude da vida campestre. Algumas vezes, a depender do sentido do vento, ouvia-se também a essa mesma distância, músicas tocadas em seu rádio.

A despensa bastante farta não lhe deixava passar privações, armazenava quartas e mais quartas de farinha no sótão, que só eram vendidas depois de nova sagra de mandioca. Em bombonas de zinco, guardava muitas sacas de feijão tratado com veneno contra praga, quantidade suficiente para consumo durante um ano ou mais, caso houvesse estiagem.

Pelos registros que se tem na tradição oral, a primeira geladeira, a querosene, que entrou no Povoado Santo Antônio, bem como o primeiro rádio a pilha, foram de tio Cândido.

As lembranças de suas peripécias causam saudade, não só a mim, sua sobrinha, mas a todos que com ele conviera. A exemplo disso, ao retornar de Recife, onde procurou por recursos médicos, estava sentado na calçada do “Armazém Flor-de-Lis”, mantido na avenida Getúlio Vargas, 402, em Picos, de sociedade com o sobrinho De Assis. De repente, passa o amigo João Vitor e pergunta:

- Candinho, você ficou bom?

- Nunca fui ruim!

Sem graça, João Vitor o indaga novamente:

- Essa sandália ainda é aquela?

- Não, é esta mesma!

...

Um freguês interessado em comprar fiado o abordou:

- Seu Cãndim eu tô quereno comprá uns pano pápagá na safra quivem!

- Não estou mais vendendo fiado!

- Mais o Sinhô me cuim-esse.

- Conheço, é por isso mesmo que não vendo!

Outro chega com a mesma intenção e o cumprimenta:

- Como está, seu Cãndim?

- Você não está vendo que estou sentado?

- Sim, mais tô perguntano como tá o comércio!

- Ah, esse vai mal, quero receber o fiado e não recebo!

- Seu Cãndim, se o Senhor me der um revólver trinta e oito e dez por cento de comissão, eu recebo tudo pru Sinhô!

- Negócio fechado, mas primeiro você vira pra você mesmo, aponta o revólver e diz: Ou você paga pra seu Candinho ou te mato!

Conhecendo as tiradas de Candinho, quem conversasse com ele tinha que ter o cuidado para não sair glosado. Muitos queriam pegá-lo numa piada, até que um dia, estando papai hospitalizado, no hospital de Dr. Oscar Neiva, tio Cândido e tia Luizinha foram visitá-lo. Visita parente aqui, visita conhecido ali... Nesse vaivém se apartaram um do outro. Em um dos muitos corredores do hospital se encontra com Adalberto e pergunta:

- Você viu Luizinha por aí?

- Vi, tio! As paredes estão cheias de luizinha.

Os dois ainda estavam a conversar quando chega a tia Luizinha, e, vendo um enorme crucifixo no pescoço do Sobrinho pergunta:

- É bento?

- Não, tia! É Jesus Cristo.

Como diz o ditado: “Um dia é da caça, outro, do caçador”.

Em outra oportunidade, estava ele novamente sentado à porta de seu comércio, quando se aproxima um compadre da Malhada. Candinho logo se antecipa em cumprimentá-lo:

- Bom-dia, compadre!

- Bom-dia, compadre Candim.

- Compadre, o come-feio não passou em sua casa? Perguntou Candinho.

- Passou não compadre, por quê?

- Porque se tivesse passado, o Senhor não estaria vivo.

- Nada, compadre, pra chegar lá em casa tem que passar primeiro na sua, e aí, já ia chegar de barriga cheia!

Meu pai Antônio Benedito, “um grande guerreiro”

O papai era a águia forte que voava longe em busca de alimento para os filhos. Ele mesmo se definia como “um grande guerreiro”.

Viajava tocando tropas do Piauí ao Maranhão, Pará e Goiás, Ceará e Pernambuco, vendendo alho e cebola e ainda abastecia a clientela da circunvizinhança com tecidos, condimentos, tintas de para tingir roupas e outros produtos industrializados. Assim, o papai viveu a sua juventude, sem luxo e sem lazer. Tudo que fazia era para dar mais conforto à família.

Homem de muita luta e destemido, costumava dizer que só temia aos castigos de Deus, lutava às vezes contra forças contrárias, enfrentando fogo e tempestades, malquerenças e perseguições, mas em seu modo austero de ser, escondia a fragilidade de um coração humilde, piedoso e a bravura de um forte guerreiro.

Ele contava que, certa vez, fez uma viagem bem sucedida. Vendeu todo carregamento e também a tropa. Por fim, achou um bom negócio e vendeu o animal de montaria, passando a fazer o percurso de um Estado pra outro, a pé.

“Eu vinha sozinho, só eu e Deus, de repente, apareceu no meio do caminho um tamanduá-bandeira enorme . Joguei um rebolo para ver se o bicho dava a estrada, mas nada! Ele se apoiou nas patas traseiras, abriu os braços e ficou em pé que nem um padre celebrando a missa! Pensei em puxar o revólver e dar um tiro pra cima, pra assustar o animal, mas depois me veio o pensamento: ‘ Não vou fazer isso não! Pode ser que tenha algum malfazejo por perto, e ouvindo o tiro venha me atacar e roubar’. Saí da estrada, dei uma volta bem grande e tomei o caminho mais adiante. Compadre, padre ficou lá de braços abertos, celebrando a missa. Foi o único vivente que me fez sair da estrada.”

Órfão de pai com apenas um ano de idade, tinha muito orgulho porque seu padrasto, Mariano Grande, a quem chamava de tio Mariano, o considerava como filho.

“ Ele não me chamava não, mas quando saia para trabalhar eu era o primeiro a acompanhar”.

Trabalhador incansável, bom pai, bom filho, bom irmão e amigo, trazia também consigo as suas fraquezas. E, quando a veneta lhe apertava, descarregava ressentimento em quem estivesse mais perto. Apesar desses impulsos nervosos que o acometiam vez por outra, viveu sem nunca ter feito mal a ninguém, apenas desabafava quando se achava injustiçado.

Pai amoroso, embora escondesse esta virtude por traz de um machismo austero, era comum encontrá-lo gracejando com a filha caçula a quem chamava de “ponta de rama” ou minha “doutorinha”. Homem pouco letrado, mas de rara inteligência, contava a história de suas viagens com enorme riqueza de informações. Foi um lutador, um batalhador e como ele mesmo dizia: “Um grande guerreiro!”

A mamãe com muito amor e amizade conviveu com o papai, com suas qualidades e defeitos, até que a morte os separou. Ele deixou uma geração de filhos que se tornaram pais e mães exemplares, um referencial de honestidade e trabalho.

“Não louve o homem antes de sua morte, pois é em seus filhos que se conhece o homem” (Eclo. 3,13).

Vida de campo, no silêncio e aconchego da paz

Morávamos numa casa campestre de alvenaria em estilo rústico, mas muito aconchegante. O terreiro de areia branca era palco dos folguedos, das brincadeiras de roda, ciranda, cirandinha, do casamento chinês e das fogueiras de São João.

Em torno do terreiro, plantas regionais nativas: bom-dia, flor branca com pistilo amarelo; boa-tarde, branca com pistilo vermelho, exalavam um cheiro característico que segundo a crença popular afastava cobras. No quintal se criavam lindas galinhas de penas coloridas. Mamãe dizia: “ Elas são lindas! Eu as criava mesmo que só servissem para enfeitar o quintal!”

No meio do pátio ficava um pé de buganvília cor-de-rosa pink, plantado com muito carinho por minha mãe. Ao lado direito, o curral da vacaria e o chiqueiro das cabras.

Minha mãe se levantava às 5:30h. Ordenhava as vacas e preparava um delicioso café da manhã, com leite, beiju e coalhada escorrida. Mais tarde, descia para o rio Riachão que banhava a propriedade. Tomava banho e lavava algumas peças de roupas. Às 10:30h lá vinha ela andando devagarinho, subindo o morro no caminho de casa. Seus cabelos pretos e lisos brilhavam ao sol.Vestida humildemente, porém limpa e cheirosa, terminava o almoço que era servido bem quentinho.

Não raras vezes, eu a acompanhava na trajetória até o rio e do rio para casa, como tinha apenas dois anos, na hora de voltar empacava dizendo: “Ocupada, ocupada, não caminha não!” E a bondosa mamãe se via obrigada a me trazer nas costas.

Nas noites de luar a calçada de nossa casa se enchia de gente: avós, tios, primos e parentes mais distantes vinham conversar, trocar informações e saber das novidades. Naquele tempo ainda não se tinha rádio nem televisão, as notícias vinham por carta ou de boca em boca. Vivíamos como dizia Luís Gonzaga: “...sem rádio e sem notícia das terras civilizadas.” Mas éramos felizes porque respirávamos o ar puro da natureza e não se ouvia falar em violência ou droga.

Durante a conversa dos adultos era servido um gostoso café, torrado em casa, socado no pilão e adoçado com rapadura ou açúcar. Enquanto isso, brincávamos de roda tal qual fazíamos na casa de vovô Mariano.

Não tínhamos brinquedos sofisticados, isso é verdade, mas tínhamos bom espaço físico suficiente para o desenvolvimento biopsicosocial.

A mãe natureza foi o centro de nossa recreação e do esporte. O tempo transcorria sem preocupação de nossa parte com qualquer perigo. Vivíamos livres como um passarinho, embora atentos às normas da religião, educação e bom relacionamento com os vizinhos. Nisso papai era bastante exigente.

Na época das chuvas o rio Riachão transbordava, pouco tempo depois, oferecia uma água pura e cristalina. Era raso, por estar perto da nascente e logo após as primeiras enchentes, já se podia ver a areia branca do seu leito e as piabas nadando numa água transparente e sem nenhuma poluição. Ficávamos horas a fio a olhar as piabinhas, e por vezes as recolhíamos em cacimbas improvisadas por nós mesmos à margem do rio.

No verão, fazíamos redes de sarça e armava-as nos galhos grossos da oiticica para nos balançar, preparávamos quitutes nas casinhas de palha, brincávamos com pequenos ossos como se fossem vaquinhas, andávamos a cavalo e fazíamos arapuca para pegar codornizes.

Vivíamos felizes e tranqüilos, sem rádio, televisão, sem informações importantes, ou nem sempre importantes...

Hoje as informações nos chegam por vezes deturpadas, distorcidas, de modo que não se pode sequer avaliar se formam ou deformam. Educam ou deseducam. Não quero com isso, desvalorizar as informações televisíveis, nem a eficiência dos meios modernos de comunicação. Há programas interessantes, instrutivos e informativos para educar a criança e o adulto. É preciso, no entanto, filtrar, selecionar o que se pode ver e o que não convém ver.

Viver no silêncio e no aconchego da paz ainda é um sonho possível, apesar da violência. No campo se tem tudo isso, além de água e ar puro. Mas a vida do sertanejo não é só sombra e água fresca, é também de muita labuta, de trabalho de sol-a-sol, luta e sacrifício.

O homem do campo acorda ao raiar da aurora e se levanta com o cântico da passarada ao amanhecer. Mal termina a lida de um ano e já se faz planos para o ano vindouro. É preciso preparar mais terras, fazer novos roçados, porque as terras velhas estão cansadas e fracas. A terra nova, está bem adubada com a folhagem que cai e se renova a cada ano. As folhas secas que se acumulam debaixo das árvores formam o paul, excelente fertilizante natural que enriquece a terra e aduba as plantas.

Escolhido o local do novo roçado, homens com machados e foices nas mãos abriam clareiras na caatinga e chapadas, derrubando moita-branca, cansanção, marmeleiro-do-campo, pau-pereira, canela-de-velho, canela-de-ema, pequiá e juremas, só sobravam os umbuzeiros nativos, os trapiás, as madeiras-de-lei e algum pau-d`arco.

Sem ajuda das máquinas e implementos agrícolas mais modernos, amontoavam a lenha, em enormes coivaras, que mais se pareciam gigantescas fogueiras de São João, logo depois, ateavam fogo e a madeira crepitava lançando fagulhas nos ares., de modo que, no dia seguinte, era possível ver a chapada ainda cachimbando e raposas, codornizes e preás fugitivos e assustados atravessando as queimadas.

Na época do cultivo do milho e feijão, papai pegava a cabaça-d’água, a enxada e o chapéu, nem falava nada, era seguido pelos filhos e passavam o dia carpindo o mato, aceirando cercas ou outros serviços que preveniam contra a invasão do gado ao legume.

Na parte da tarde, mamãe lhes levava um cafezinho com bolo frito ou beiju, à noitinha, já quase escuro retornavam do serviço e, segundo De Assis, cheirando a miroró.

Transferência da Família para o povoado

“Santo Antônio”, ascensão e queda.

Face à necessidade de ingressarmos na educação formal, nossos pais se mudaram, em maio de 1945, para o povoado Santo Antônio que distava apenas dois quilômetros de onde morávamos.

Chegando a “Santo Antônio” nos instalamos em casa própria, graças a Deus e a nossos pais que sempre se preocuparam em ter sua própria moradia.

Adaptados facilmente à vida em comunidade, fizemos boas amizades, participando alegremente do novenário de Maria e dos festejos religiosos do padroeiro Santo Antonio que ia de primeiro a treze de junho.

Havia um Senhor chamado André Francisco Rodrigues, André Ramos, bastante conhecido na região, que era proprietário de terras nas imediações. Fez a doação do terreno e a comunidade edificou, em 1938, uma igreja cujo padroeiro é Santo Antonio.

André Ramos foi o primeiro administrador da igreja e dos eventos celebrativos ali realizados. Sua casa ficava logo ao lado da igreja e era um ponto referencial. Passava-se telegrama para o povoado Santo Antônio aos cuidados de André Ramos.

Naqueles primeiros tempos, duas ruas ainda sem nomes se destacavam: a rua em que morávamos, que dava acesso ao Balseiro, Jenipapeiro, Picos, dentre outras localidades e a rua em que moravam Pascoal Silva e Isaac.Posteriormente, nossa rua recebeu o nome Sete de setembro, a outra, Nove de Abril, em homenagem ao dia da emancipação do Povoado. Atualmente, a Nove de Abril tem o nome de José Lopes da Silva, comerciante falecido.

Ao lado esquerdo da igreja, em frente a nossa residência, foi preservado um vasto espaço físico de areia branca, onde é a praça Justino Batista. Neste local, naquele tempo, o povo sentava para ouvir Antônio Pereira da Costa cantar versos alusivos ao Povoado e a seu povo.

Perto da praça fica o mercado público dividido em pontos comerciais, outrora, propriedade privada. Ali o papai Antônio Benedito se estabeleceu com uma loja de tecidos.

Esses pontos comerciais do mercado eram chamados de Quarto e foram eternizados nos versos do repentista Antônio Pereira Costa:

“...Ia saindo lá do quarto de Cambito

Seu Antônio Benedito

Quero falar com você

Tem crepe, seda e vual de encomenda.

Todo tipo de fazenda

Ele tem para vender...”

...

Nessa época, papai tinha um comércio de tecidos no povoado foi o começo de nossa ascensão econômica. Ele toda vida foi respeitado e conceituado, sabia comprar e vender. Comprava em Fortaleza e Crato, no Ceará, e vendia em seu estabelecimento comercial e nos lugarejos vizinhos. Em curto período de dois anos, nosso poder aquisitivo cresceu. Papai construiu um ponto comercial ao lado de nossa residência e transferiu a loja para lá. Ali se vendia razoavelmente bem: tecidos e seus artefatos, remédios populares, tintas para tingir roupa, óculos de grau e bebidas leves, os capilés e água inglesa. Tornou-se comerciante ambulante atendendo em fazendas e povoados: Riachão (Monsenhor Hipólito), Itaim (Itainópolis), Samambaia e outros.

Não existindo ainda escola pública, e pensando na escolarização dos filhos e das crianças da comunidade, papai solicitou ao então Prefeito de Picos, Cel. Francisco Santos uma escola pública para o povoado e foi prontamente atendido.

A escola recebeu o nome de Escola “Nuclear” do Estado, sendo que para funcionar foi necessário ceder para o Estado uma sala da nossa casa, a mesa do professor e os bancos dos alunos. Mamãe foi a primeira professora pública estadual da localidade e exerceu com dignidade e competência a função de educadora e um grande número de crianças foram alfabetizadas.

Nossa família militava ao lado do Partido Social Democrático - PSD, chefiado pelo Cel Francisco Santos, que estava com o governo. Havia outro partido, a União Democrática Nacional – UDN representado pelo Sr. Justino Batista de Carvalho, então vereador da Comarca Municipal de Picos. Quando a UDN. ganhou a eleição de governo do Estado, demitiram a mamãe. E foi na gestão do Sr. Justino Batista que se construiu a sede da Escola “Nuclear” do Estado, uma espécie de casa rural. O prédio tinha uma grande sala de aula equipada com bancos escolares e uma outra para residência. Em sua sede própria passou a chamar-se Escola “Isolada” do Estado.

Após a demissão da mamãe foi contratado o professor Miguel Borges de Moura, (Miguel Guarani), com ele conclui a 4ª série do primeiro grau. O professor Miguel se destacava por ser um ótimo preparador de alunos para o exame de admissão ao ginásio. Além disso, era poeta e repentista. Passado algum tempo, o professor Miguel foi lecionar no povoado Jenipapeiro, deixando em seu lugar a filha Teresinha de Jesus Moura, que por não ter formação pedagógica, e por motivos partidários fora demitida do cargo.

Tudo transcorria em curso de perfeita normalidade.Vivíamos confortavelmente bem e tínhamos uma certa estabilidade econômica, até que a partir de 1947, com a queda do preço do algodão, o comércio de tecidos sofreu um “esfriamento” desestabilizador. Conseqüentemente, comerciantes da localidade fecharam suas lojas.

Então, meu pai decidiu: “Já que a concorrência diminuiu, vou segurar os preços. Essa crise deve ser passageira!”

Assim, optou por não baixar seus preços, em contrapartida as vendas eram insuficientes para saldar as dívidas com os fornecedores. Por conseguinte, recorreu a empréstimos tomados a agiotas, com altos juros capitalizados. Deste modo, foi necessário dar por conta aos credores parte da casa de morada, gado e roças.

Há esse tempo, a família estava numerosa. Mais cinco filhos haviam nascido. Já éramos onze. Nesse período, passamos por enormes dificuldades financeiras e foi aí que conhecemos os verdadeiros amigos. Contudo, apesar dos percalços nunca desanimamos, tínhamos muita saúde, fé em Deus e vontade de vencer na vida.

O Padroeiro Santo Antônio

As festas do padroeiro eram, para mim, também motivo de lazer, por causa dos encontros com os amigos e/ou namorado no patamar da igreja, no leilão de abertura dos festejos e no dia seguinte, depois da celebração da missa.

Com grande fé e empolgação, festejava Santo Antônio em cada dia 13 de junho, data de aniversário de sua morte, que para a Igreja, representa o renascer para a eternidade.

São muitas as formas de devoção no Brasil ao glorioso Santo Antônio: em quase toda família há pelo menos um Antônio, senão mais. Lá em casa, meu pai Antônio, casou-se com minha mãe Antônia. Os filhos homens à exceção De Assis, têm Antônio em seu sobrenome e as mulheres, pelo menos quatro delas registram Antônia no segundo nome.

Podemos encontrar Estados cujas cidades levam o no “Santo Antônio”. Isso também vale para as ruas. Rara é a igreja ou capela que não tenha em seus altares a imagem deste Santo. Em sua homenagem realizam-se festejos, procissões e rezas. Promessas são feitas com o propósito de alcançar graças. Além do Responsório de Santo Antônio que inclui pedido para encontrar coisas perdidas.

Segundo Frei Ildefonso, citado em Camboso (1995: 213):

“A devoção popular às vezes apela para a violência, tentando forçar SA, com gestos de cunho supersticioso, como pendurar a imagem do Santo de cabeça para baixo, expô-la à chuva, metê-la num poço, esbofeteá-la e, quando viável, arrancar dos braços do Santo impassível, o menino Jesus”.

Mestre de Teologia e Doutor da Igreja o que mais o tornou popular depois dos milagres foi ter lutado devotadamente, em sua vida, para derrocar a lei do “dote” pois as moças pobres que não tinham nenhum bem material a oferecer ficavam solteiras.

Conta-se que uma donzela cristã não conseguia casar-se por não possuir dote. Recorreu confiante a Santo Antônio. Das mãos da imagem do Santo caiu um papel com um recado assinado, a um agiota, pedindo-lhe entregar à moça, em moedas de prata, o correspondente ao peso daquele papel. O prestamista obedeceu sem relutância, e os pratos da balança só se equilibraram quando as moedas atingiram o valor de um dote!...

Essa história, real ou lendária, atribuiu ao Santo a fama de “casamenteiro”.

Retorno da Família para

a casa de Campo

“cada um precisa caminhar com seus próprios pés, para aprender a viver” (PASTORINO, 2000: 79).

Por volta do ano de 1953, com a loja de tecido praticamente desativada, nossos pais resolveram voltar para a casa de campo. Morando em nossa propriedade rural teríamos melhores condições de explorar a agropecuária.

Banhada pelo rio Riachão ela possui terras férteis propícias à agricultura e à criação de gado. Além de um enorme carnaubal pronto para a extração da cera de carnaúba, cuja atividade se mostrava bastante rentável, na época.

A mamãe e alguns dos meus irmãos gostaram da idéia de voltar a morar na casa de campo, visto que, morando no povoado, os meninos tinham que se deslocar para cuidar do gado e da lavoura. Isso deixava a mamãe preocupada.

Eu sempre gostei da vida do campo, mas nunca me envolvi com lavoura, meu sonho era estudar e fazer curso superior, visando galgar crescimento profissional na área de educação. Como estudar no momento não era possível, deixei aflorar o dom artístico que Deus me deu. Passei a confeccionar roupas masculina e feminina, bordar à mão, à máquina, fazer tricô e crochê. Com isso, tinha renda suficiente para minha manutenção. O fruto desse trabalho possibilitou-me comprar, em julho de 1953, uma máquina nova de costura de marca, C.R.O.W.N, que está comigo até hoje.

Graças a Deus somos talentosos. Crescemos assumindo responsabilidade, mesmo sendo ainda criança ou adolescente. Nosso objetivo era, estudar, trabalhar, crescer juntos e vencer na vida. Falo sem nenhum esnobismo que nossos objetivos foram todos alcançados com muita luta, sacrifício, força, coragem, honradez e brio.

Todos têm uma história pra contar, por maior ou menor que seja. Não há vida sem história! É preferível reviver o passado, sem ódio nem rancor a abafar alguma lembrança dolorosa que fere o coração e corrói a alma.

Valorize a vida, vivendo cada momento como se fosse único, contemplando as maravilhas de Deus em cada rosto novo que surge.

“Viver bem não é outra coisa senão amar a Deus de todo o coração, de toda a alma e em toda forma de agir. Dedicar-lhe um amor integral (pela temperança) que nenhum infortúnio poderá abalar” (SANTO AGOSTINHO apud CIC, 1997: 424) .

Obrigado, Senhor, pelo dom da vida e por tudo que me faz! É o que deve repetir nossa pobre alma a cada dia. “Lembrar de Deus com maior freqüência que se respira”, é viver na paz dAquele que é a paz.

Um Jovem Patriarca,

conselheiro e apaziguador.

Em dezembro de 1954, doze filhos formavam a prole dos amados pais, Antônio Benedito e Antônia Josefa. O segundo filho, Francisco de Assis, um adolescente com apenas 17 anos de idade, centrado e cheio de esperança de um futuro próspero, viajou para São Paulo, a grande metrópole brasileira, em busca de um emprego promissor, a exemplo de outros rapazes, seus conterrâneos, que já residiam lá.

Durante cinco anos, trabalhou de São Paulo a Goiás. Em 1959, retornou a sua terra natal, com uma boa bagagem de experiência adquirida naqueles grandes centros, onde exerceu atividade comercial.

Rapaz bonito e saudável, personalidade bem formada, bom caráter, homem feliz porque durante o tempo que esteve fora, não esqueceu a família, colaborou, foi solidário conosco mesmo com limitações econômicas.

No dia 15 de abril de 1960, ingressou como comerciário na Empresa do Sr. Isaac Batista de Carvalho com quem adquiriu mais experiência de trabalho, confiança e amizade. Algum tempo depois, de empregado passou a ser sócio em um caminhão com Isaac Batista. Desfez amigavelmente a sociedade em junho de 1963 e montou seu próprio negócio, Armazém “Flor de Lis”.

O sonho de reunir a família o levou a comprar uma casa em Picos, rua São Sebastião, 343. Uma casa enorme, que os meninos sabiamente a chamaram de casarão. O segundo grande sonho de Assis e conseqüência do primeiro era formar os irmãos.

Estabelecida a loja com mercadorias diversificadas, De Assis trouxe para sua companhia e assumiu como bom pai, o menino Adalberto, irmão caçula dos homens, de 11 anos de idade, que ensinou a trabalhar no comércio e o pôs para estudar no Instituto Monsenhor Hipólito.

Filho mais velho dos homens chamou para si a responsabilidade de pai, retardando seu matrimônio para cuidar dos irmãos.

Por causa desse exemplo que vi e experimentei na vida da família, posso afirmar que a maior pobreza não é a falta de dinheiro, mas a falta de vontade de servir, mesmo porque, as pessoas não precisam somente de dinheiro, às vezes basta um incentivo: “Vá, enfrente, e se precisar de ajuda conte comigo.!” Se a pessoa não vier a precisar de nada daquele que se colocou à disposição, a ajuda em encorajar foi o suficiente para torná-lo um vencedor.

“Todo aquele que compreende a vida, que sabe dizer uma palavra de conforto, que sabe estender a mão compassiva ao necessitado, que sabe distribuir alegria e otimismo, é rico, imensamente rico de bondade, que jamais falta, por mais que distribua por milhares de pessoas” (PASTORINO, 2000:.86).

Nunca diga não posso ajudar porque sou pobre, pois a pobreza maior é a falta de boa vontade.

Não se pode falar em Assis, sem dizer que traz consigo muitas características do vovô Mariano, principalmente de conselheiro e apaziguador. Quantos, e não são poucos os que o procuram, chamam-no em particular e confidenciam-lhe as dificuldades, problemas mais diversos e conflitos medonhos: familiar, de terras, de vizinhos... e não saem dali, se não com a solução, com um aconselhamento verdadeiramente sincero e uma orientação segura.

Transferência da Família

para Picos, um sonho,

uma realidade.

“Tudo que é seu por direito divino

lhe há de chegar às mãos na hora oportuna

nem mais cedo do que deve, nem com atraso”.

(PASTORINO, 2000: .132)

O sonho de educar os filhos vai aos poucos se realizando, graças ao trabalho, fé e oração de nossos pais. Terço todos os dias, ofício de Nossa Senhora aos sábados, e a interferência divina manifesta através da boa vontade do filho mais velho.

Em 1964, De Assis já estava estabelecido comercialmente em Picos e pensando dar oportunidade de crescimento intelectual, moral e profissional, trouxe suas irmãs: Alzira, Iracema e Luísa Edilce as quais passaram a trabalhar no comércio durante o dia e estudar à noite. José Lima trabalhava no comércio do tio Pascoal e Rosita morava e estudava no Instituto Monsenhor Hipólito.

Montada a casa, em condições de moradia, juntaram-se os irmãos De Assis e José Lima, assim como as irmãs mais velhas. O relacionamento deles consistia numa convivência solidária e harmoniosa.

Em 1965, Alaíde juntou-se aos irmãos. Preparada para o “vestibular” de admissão ao ginásio, tinha formação anterior na Escola “Isolada” do Estado, em Santo Antônio. Em dezembro do mesmo ano prestaram o Exame de Admissão no Colégio “Marcos Parente” – e foram aprovados: Maria do Socorro (casada com Joaquim Batista), Alzira, Iracema, Luísa Edilce e Alaíde. Na época José Lima e Rosita já faziam a 1ª série ginasial.

No dia 28 de fevereiro de 1967, o sonho de reunir a família se realizara. Assis e José Lima terminaram de mobiliar a casa e levaram, para Picos, os nossos pais e as três irmãs mais novas que ainda estavam com eles: Maria de Fátima, Wilzenir e Vilzedir.

A mamãe viveu seus últimos dias no Casarão e com certeza teve ali uma felicidade quase completa, uma vez que a felicidade plena só se alcança na casa celestial do Pai. Sua alegria de estar morando confortavelmente em Picos e o desejo de reunir toda a família foi revelado numa carta que me escreveu:

“Minha filha, aqui é muito bom... depois a gente dá um jeito de trazer Carmélia e a família. Será um Céu aqui na terra”.

Foi um bom tempo por pouco tempo, mas valeu! Os estudantes saíam para o colégio alegres por sentirem de perto o carinho da mãe que os esperava com um terço na mão para rezarem juntos, antes de dormir. Sonolenta que era ao anoitecer e a insônia que sofria na madrugada, não a impediam de ficar acordada até às 22:00h esperando os filhos chegarem da aula. Era uma família estudando numa mesma escola, tanto que quando mamãe morreu, o Colégio Estadual “Marcos Parente” decretou feriado de um dia. Ela tinha sete filhos estudando lá.

Seu sonho de me ver morando em sua casa para continuar meus estudos se realizou, mas ela não viveu o suficiente para ver, pois no dia 11 de abril de 1967, mesmo ano em que se mudou para Picos, Deus a chamou para a eternidade, para o convívio dos eleitos. Voou como uma pombinha branca, no silêncio da noite, assistida pelos anjos celestes que a levaram ao Pai. Conosco ficou a saudade, a mensagem de amor deixada através de suas boas obras feitas com humildade, solidariedade, fraternidade e caridade - virtudes difíceis de serem encontradas reunidas numa mesma pessoa.

“O exemplo de um lar bem constituído é a maior felicidade que se pode legar aos filhos” ( PASTORINO, 2000: 55).

Somos a brisa que rodeia os campos verdejantes ajudando a polinização das flores ou os ventos devastadores. Cabe a cada um decidir em qual contexto quer situar-se.

Na cruz com Cristo

papai viveu 15 anos

Papai sofria de surdez, desde novo, seqüela deixada pela caxumba, e era portador de catarata nos dois olhos. Ficara viúvo aos 54 anos e não conseguiu contrair novas núpcias.

Depois que a mamãe morreu, sua vida passou a ser uma eterna via crucis, vivia triste e solitário mesmo tendo a casa cheia de filhos. Tinha saudade da vida do campo e ainda não se acostumara com a viuvez.

Em outubro de 1973, sofreu uma trombose cerebral que o deixou inválido por seis meses. Não andava, não falava, dependia dos filhos para tudo. Clinicamente foi acompanhado pelo Dr. Osvaldo Alves Costa e por um fisioterapeuta prático a quem papai, depois que voltou a falar, graciosamente chama de “Dr. Teleco-teco”. Durante a convalescença ficou na casa de Socorro, a menina "Corrinha”como a chamava carinhosamente. Finalmente conseguiu conversar e andar, mancando apenas de uma perna.

Logo que começou falar, e referindo-se a Adalberto que lhe prestara assistência disse:

“ Filho bom, parece que não dorme! Toda vez que me viro na cama ele está perto de mim.”

O papai, apesar de ter respondido bem ao tratamento, além de arrastar uma perna, ficou também com distúrbios emocionais, tanto que em suas divagações costumava dizer:

“Meus filhos me botaram sete cabrestos: não me deixam casar com uma menina nova! Tem filho de menor, tem filho de menor!...até um ano de viúvo, tá legal! Depois de um ano é um louco! Quem não se casar. Não querem fazer o inventário, quero a minha parte e dar a de vocês; por que não? Por que não!”

Ele mesmo fazia verbalmente a divisão dos bens. “Não me deixam morar na minha propriedade em Santo ‘Antônio de Lisboa’. Sou rico, minha propriedade é cercada de arama farpado e tem 72 braças de vazante no rio Riachão, que dá tudo que se plantar. As roças de carnaubal que comprei com meu dinheiro é um tesouro, volume uma fortuna!”

Então contava minuciosamente todos os passos das viagens que fazia ao Maranhão vendendo mercadorias e citava os nomes dos companheiros de jornada.

Por um pequeno período tomou a decisão de voltar para Santo Antônio de Lisboa, ficou hospedado na pensão de Jorge Surica e Maria Monaça onde recebeu respeito e consideração dos donos da pensão. Todo dia andava a pé cinco quilômetros para visitar seu belo tesouro já deteriorado pela ação do tempo e dos vândalos.

Observava os detalhes e se irritava por detectar que roças cheias de pastos que poderiam render-lhe algum dinheiro, estavam clandestinamente de porteiras abertas para animais de fazendeiros; que os arames farpados estavam sendo retirados das cercas deixando as roças que alimentavam o gado, virar capoeira.

Não queria acreditar, mas era pura verdade estava tudo se desmoronando e não podia senão não falar e falar...Desabafar.

Sem querer vir morar em Picos, foi necessário levarmos para fazer tratamento numa casa de repouso em Teresina. Quando recebeu alta, veio morar com José Lima e Maria da Penha. Passado algum tempo, voltou para a casa de Socorro, retornando ao casarão, seu verdadeiro lar.

Papai ficou conosco até 08 de março de 1988 quando foi chamado por Deus para outra dimensão.

“Nenhuma história humana é escrita sem a presença de uma ou duas mãos amigas que se estendem em nossa direção.”

O Casarão da Família

O casarão, por si só, é história. Não pelo monumento arquitetônico que não chega a ser, mas pelo que se viveu nele. É parte intrínseca de nossas vidas, principalmente dos meus sobrinhos (as), netos queridos de nossos pais. Foi nesta residência que a mamãe viveu os dias de maior conforto na vida. Ali ela pode usufruir as vantagens do bem-estar e lazer oferecidos pela tecnologia: televisão, telefone e outros aparelhos eletro-eletrônicos de entretenimento ou facilitadores do trabalho da dona de casa. Também no casarão pôde, antes de sua morte, reunir quase todos os filhos “debaixo de suas asas”.

Em trecho de uma carta que me enviou convidando a morar em Picos, mamãe fala de sua felicidade em estar perto de Socorro e do desejo de ajuntar todos os filhos:

“ Minha filha peça transferência pra cá...todos os dias vou na casa de Socorro... é um Céu aqui na terra...”

A felicidade na terra é passageira, assim como a vida também é passageira. Naquele mesmo ano em que se mudou para Picos, Papai do céu a chamou para junto dele. Voou no silêncio da noite como um anjo, cujo barulho das asas não se ouve.