Entre Sem Bater - O Conhecido
Ambrose Bierce disse:
"... conhecido (s.m.) é uma pessoa que conhecemos bem o suficiente para pedir algo emprestado, mas não bem o suficiente para emprestar. Um grau de amizade chamado leve quando a pessoa é pobre ou obtusa e íntima quando a pessoa é rica ou famosa ..."(1)
É provável que o "The Devil´s Dictionary"(*) de Bierce tenha verbetes que seriam fonte inesgotável de termos para a série "Entre Sem Bater". Infelizmente, não tenho acesso, atualmente, ao original e nem a possíveis traduções para o português - em breve terei. Contudo, alguns verbetes e frases nos dão a dimensão de que Bierce era muito mais do versátil e crítico. Sua definição (do dicionário e das redes sociais) do cara, cristão(2) ou não, que é um conhecido beira, sem dúvida, a perfeição.
O CONHECIDO
Em primeiro lugar, vamos falar da palavra conhecido, enquanto substantivo masculino. Desse modo, não estamos nos referindo ao particípio passado do verbo conhecer e nem de algum adjetivo.
Conhecido ( co·nhe·ci·do )
substantivo masculino
1. Pessoa que nos é conhecida.
adjetivo
2. Que se conhece.
3. Que se sabe ser.
in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa.
E, adicionalmente, a questão aqui é diferenciar, de termos como amigo, colega ou qualquer coisa que relacione uma pessoa com a outra. Podemos dizer que a palavra conhecido, bem colega e amigo aplicam-se, na maioria dos casos, quando queremos associar, a alguém, positivamente. Desta forma, podemos dizer que desconhecido, inimigo e afins são antônimos, quando queremos nos afastar do dito cujo.
Ambrose, em seu dicionário cínico e crítico, descreve a categorização de conhecido, que nos faz pensar sobre o contexto atual das redes sociais. Surpreendentemente, a maioria das definições de Bierce possuem mais de um século, e possuem uma consolidação, atualmente, que assusta.
A definição de dicionário, por exemplo, não explica nada, é recursiva, não entra no âmago da questão que Bierce destaca.
DE CONHECIDO A AMIGO
A definição de "conhecido" segundo Ambrose Bierce, presente em seu "Dicionário do Diabo", revela nuances profundas sobre as relações interpessoais. A definição, que reflete uma perspectiva crítica e irônica sobre as relações sociais, é o ponto de partida para discutir a vulgarização de muitos termos. Podemos, por exemplo, tratar da relação colega, amigo e conhecido na era das redes sociais, muito posteriores à análise de Bierce.
A BANALIZAÇÃO DAS RELAÇÔES
Atualmente, com a popularização das redes sociais, a palavra "amigo" passou a uma utilização excessiva e vulgar. E, como se não bastasse, sem a devida consideração por seu significado original ou de aceitação universal. A contagem de "amigos" nas plataformas digitais muitas vezes inclui pessoas que, inquestionavelmente, mal conhecemos.
Esse fenômeno resulta em uma diluição do conceito de amizade, onde a quantidade parece sobrepor-se à qualidade das relações. Como em diversas análises contemporâneas, essa banalização transforma o termo "amigo" em um rótulo que aplica-se a qualquer pessoa. Em suma, basta que se tenha uma interação mínima ou um aceite de "amizade" e pronto, viramos amigos.
COLEGAS VS. AMIGOS
Por outro lado, a distinção entre colegas e amigos, nesse novo contexto social e até mesmo profissional, confunde muitas pessoas. Enquanto um colega é alguém com quem temos uma relação ocasional, num ambiente de trabalho, social ou escolar, um amigo é outra coisa. Em outras palavras, amigo é alguém com quem compartilhamos relações com maior profundidade.
A confusão entre esses termos é comum nas interações online, onde muitos se referem a colegas como amigos, por compartilhar uma conexão digital. Desse modo, temos muitas oportunidades de vivenciar desilusões quando percebemos a ausência de "amigos" nos momentos difíceis da vida.
A verdade básica(3), como diria o Dr. Gregory House, reproduzem em dois pensamentos:
"Quer saber a quantidade de amigos, dê um churrasco, quer saber a qualidade dos amigos, fique doente"; e
"Todo mundo mente".
IMPACTOS DIGITAIS
As redes e aplicativos desempenham, atualmente, um papel crucial e preponderante na formação dessas novas dinâmicas sociais. O ato de adicionar alguém como amigo em plataformas como Facebook ou Instagram não requer nada. Ou seja, não importa se temos um conhecimento profundo ou um vínculo significativo, vale o momento, superficial ou não. Enfim, é uma ação rápida, na quase totalidade das situações impulsiva, inconsequente e até irresponsável.
Esse processo facilita, certamente, o surgimento de uma rede ampla de conhecidos, e empobrece as interações humanas genuínas. A superficialidade das relações online contrasta com a profundidade que se espera de uma amizade verdadeira. E, sem dúvida, é uma grande fonte de problemas além das decepções, como fraudes, golpes e trapaças.
As pessoas se acostumaram a conhecer outras virtualmente primeiro e depois presencialmente. Desta forma, como foi no meu caso, amplia-se a oportunidade de conhecer muitas pessoas diferentes em qualquer lugar do planeta. Contudo, cada uma destas pessoas não passa de um desconhecido, longe de ser um colega, amigo ou conhecido.
DOCES ILUSÕES
As redes sociais têm um impacto significativo na forma como estabelecemos e mantemos nossos relacionamentos. Desde que somos um conhecido de alguém, a recíproca não é verdadeira. Com toda a certeza, as redes facilitam a conexão com um número muito maior de pessoas. Por outro lado, levam à banalização de relacionamentos, inclusive alguns que eram reais, um vínculo real pode se perder facilmente.
AMIZADES VIRTUAIS
Assim sendo, a amizade virtual — com interações predominantemente através de mensagens e postagens — tem suas próprias características. Embora possa proporcionar conforto e apoio em alguns casos, também pode criar uma ilusão de proximidade que não é real ou séria. As pessoas sentem-se em conexão com indivíduos que nunca estarão pessoalmente, levando à confusão sobre o que realmente significa ser amigo. Essa situação é emblemática da era digital, onde um conhecido online mascara a ausência de uma conexão real.
Embora as redes sociais nos façam sentir em conexão, elas criam uma ilusão de proximidade que não se realiza, na maioria dos casos. Interagimos com pessoas online e quando nos encontramos pessoalmente, a decepção pode ser enorme. Por exemplo, mantenho, há décadas, o hábito de tentar a conexão com pessoas que conheci no ambiente virtual. E, em vários casos, o perfil ou a pessoa ofereceu um monte de desculpas para não se encontrar pessoalmente, quando visitei a cidade delas. Posteriormente, descobri que muitas não eram o que diziam ser nas redes sociais, e se escondiam até criminosamente.
Ah! vão dizer os leitores sabichões, "... todo mundo sabe disso ...". Pois eu digo que comprovei a real distância entre um conhecido, um colega e um amigo. Posso afirmar que, indubitavelmente, a realidade é muito mais cruel do que dizem por aí.
LEALDADE E INTEGRIDADE
Com toda a certeza, amizade e laços com algum colega ou conhecido não estão na relação das virtudes do Bushido(4). Mas lealdade e integridade são duas das virtudes que podemos utilizar para, junto com a confiança, diferenciarmos o conhecido e o amigo.
A lealdade e a confiança são essenciais para relações duradouras e significativas e quem não consegue enxergar, vive de ilusão. Estas virtudes se constroem através do compartilhamento de experiências, do apoio mútuo e respeito. Nas redes sociais, é importante ser seletivo com quem compartilhamos informações pessoais e com quem desenvolvemos uma qualquer conexão.
Em suma, vai muito além da curtir, compartilhar, seguir, aprovar, exige a definição ancestral, não bíblica, de honra. Embora as redes sociais nos conectem com milhares de pessoas, elas também levam à distorção da ideia de "amigo" e "colega".
A definição de Bierce sobre "conhecido" serve como um lembrete da complexidade das relações humanas. À medida que navegamos no mundo virtual, é essencial refletir sobre a qualidade dos laços que formamos. A superficialidade das interações nas redes sociais pode levar à desvalorização de todos os significados, de conhecido a amigo.
Portanto, é fundamental cultivar relações que vão além do superficial — aquelas que se constroem sobre confiança, lealdade e honra. Ao revisitar as definições clássicas e refletir sobre as mudanças contemporâneas nas interações sociais, devemos ter um equilíbrio e racionalidade,
Afinal, se alguém é seu conhecido, pela exposição dele, não quer dizer que ele ao menos te conheça. E, eventualmente, ele pode fingir te conhecer, para dar algum golpe ou beneficiar alguém, acontece muito mais do que a maioria pensa.
Você tem algum conhecido de estimação? Pede um dinheiro emprestado para ele?
"Amanhã tem mais ..."
P. S.
(*) The Devil's Dictionary é um dicionário satírico do jornalista americano Ambrose Bierce. Consiste de palavras comuns com suas definições humorísticas e satíricas. A princípio como The Cynic's Word Book em 1906 e, posteriormente, numa versão mais completa em 1911.
(1) "Entre Sem Bater - Ambrose Bierce - O Conhecido" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/09/23/entre-sem-bater-ambrose-bierce-o-conhecido/
(2) "Entre Sem Bater - Ambrose Bierce - O Cristão" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/09/29/entre-sem-bater-ambrose-bierce-o-cristao/
(3) "Entre Sem Bater - Md House - A Verdade Básica" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/10/24/entre-sem-bater-md-house-verdade-basica/
(4) "As 7 Virtudes do Bushido" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2016/02/15/as-7-virtudes-do-bushido/