O último ano da minha vida
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O ano era 2002, o último da minha vida de menino livre e solto no mundo. Estudava pela manhã e tinha as tardes e noites livres para fazer o que bem entendesse, e meus pais permitissem. Costumava passar o tempo em casa, lendo qualquer coisa ou indo para os treinos de futebol (que eu jogava muito mal) e aulas de natação. Eram tardes longas e prazerosas que não voltarão nunca mais. As noites, quase todas, eram tomadas por partidas de futebol no vídeo game (que eu também jogava muito mal), no famoso Winning Eleven, do Playstation 1, que jogava com meus primos e alguns amigos. Vez ou outra, havia algum compromisso da Igreja, já que a maior das atividades que eu desempenhava como católico praticante ocorria aos sábados e domingos. O tempo passava lentamente, sendo possível fazer tudo aquilo que me dava prazer: estudar, ler, praticar esportes e conviver com meus amigos. Essa era a vida dos sonhos e, como todo menino, eu não tinha consciência disso. Fazer coisas que nos dão prazer, na vida adulta, é quase um privilégio, ou uma recompensa.
E a natação foi uma das coisas mais prazerosas que já pratiquei na vida. Comecei tarde, aos quatorze anos de idade. Mas, aprendi a nadar rapidamente. Em poucos meses, eu já dominava o nado crawl, costas e peito. Não com a perfeição e a velocidade que eu queria, mas já dava pro gasto. Penso que, caso hoje eu enfrente alguma situação de afogamento, saberei o que fazer (espero que eu não esteja iludido, por deus!). As aulas na piscina pública do centro esportivo da cidade ocorriam às terças e quintas, no fim da tarde. Era uma alegria imensa ir para lá e fazer tudo o que a professora mandava e, no final, poder nadar livremente. Pra fechar, organizamos uma pequena competição de “tiro” entre os meninos mais próximos. Como de costume, nos esportes, eu não era tão bom e acabava em colocações medianas ou derradeiras. Isso, no entanto, não me tirava o gosto por qualquer prática esportiva. Me desenvolvi bastante no tempo da natação. Principalmente quando, anos mais tarde, aliei esse esporte à musculação. Pude experimentar a sublime sensação de, ao final do dia, depois do expediente puxado, poder nadar 1500 metros, mais um treino de pernas ou peito na academia. Ao chegar em casa, já tarde da noite, dormia moído, cansado, mas satisfeito, com os músculos relaxados. Definitivamente, nadar me fazia muito bem.
Para além da prática esportiva da natação ou futebol, a volta pra casa era sempre uma caixinha de surpresa. Como bom moleque atentado que eu era, não me contentava em caminhar tranquilamente pelas ruas. Sempre buscava algo que me trouxesse alguma emoção ou divertimento. Na volta do futebol, na rua em que eu morava, duas quadras antes da minha casa, havia uma pequena relojoaria. Nela, trabalhava um velho relojoeiro que, sozinho, tocava o pequeno negócio. Acho que se chamava Aarão, não tenho certeza. Cheguei a precisar dos serviços dele algumas vezes, para trocar a bateria ou ajustar a pulseira dos relógios baratos que eu usava. Achava curioso o monóculo que ele usava, como uma espécie de lupa, para enxergar melhor os detalhes dos aparelhinhos que consertava. Sempre que meu espírito possesso estava no controle de minhas ações (e isso era frequente), eu entrava na relojoaria e lançava a pergunta mais descarada e idiota que se podia fazer num lugar como aquele: “Moço, você conserta relógio?”. Fazia isso sem pudor algum e repetidas vezes. Ele, nas primeiras, respondia pacientemente que sim, e eu saía sem falar mais nada, apenas rindo e debochando. Não sei quanto tempo ele manteve aquela postura, mas não foi pouco. Certo dia, no horário habitual em que eu costumava entrar no recinto para disparar minha infame pergunta, o sr. Aarão já estava preparado. Havia cansado da minha sem-vergonhice e me pegou de surpresa. Ao me ver por inteiro dentro da relojoaria e ouvir por completo a minha pergunta, sacou um copo cheio de óleo e zás, jogou-o em mim, manchando toda a minha camiseta. O olhar de satisfação e vingança dele era majestoso. Sou sorriso era largo, os olhos bem abertos, que chegavam a esticar as rugas de teia de aranha que tinha nas maçãs do rosto. Ele não precisou, enfim, me responder. A ele bastava apenas o doce gosto da vingança contra aquele moleque insolente que há tempos o perturbava. Meus amigos embarcaram com ele na risada sarcástica, porque já haviam me avisado que uma hora eu me daria mal. E me dei, muito mal.
Essa não foi a única vez em que me dei mal no caminho de casa. Noutro dia, na volta da natação, andávamos agitados, falando alto e rindo muito. Depois de atravessar o último cruzamento, uma quadra antes de chegar à avenida principal da cidade, uma moto precisou reduzir a velocidade para ver se não vinha um outro veículo. Ao frear, um barulho alto e estridente cortou nossos ouvidos e chamou a atenção. Automaticamente, soltei, sem maldade ou pretensão nenhuma: “Vai lubrificar esse freio, caralho!”, sem imaginar que o motociclista ouviria. Mas ouviu. Não só ouviu, como deu meia-volta e se aproximou. Parou a moto, mas não desceu. Apenas levantou o capacete e, de forma agressiva, disparou impropérios e ameaças dos quais agora não me lembro. Senti medo e fiquei acuado, sem reação alguma. Sei que a frase que soltei não foi das mais educadas. Não fazia ideia se era possível ou não lubrificar os freios de um veículo. Mas aquele homem ficou imensamente ofendido com a minha sugestão e veio até nós para revidar. Meus amigos ficaram quietos, acho que também sentiram medo. Mas, para nossa sorte (minha, na verdade), ele ficou só nas palavras. Engatou a primeira e seguiu seu caminho, o que foi seguido por uma respiração de alívio de todos nós. Na sequência, a já esperada reação dos meus companheiros, rindo de mim e reclamando do meu comportamento descontrolado sempre que estávamos juntos na rua. Acho que depois dessa, eu aprendi, pois não me lembro mais de situações assim.
Depois disso, meus últimos dias da vida de menino livre e solto no mundo foram chegando ao fim. Ao passar para o ensino médio, comecei também um curso profissionalizante no período da tarde. Os treinos de futebol e natação pararam. As partidas de vídeo game foram se tornando raras. Apenas a leitura foi se intensificando e se tornando minha principal atividade nas escassas horas livres. A vida adulta estava chegando, infelizmente. Penso que os frutos desse meu período vadio e travesso foram muitos. Ainda me restam a irreverência, o deboche, a graça e algumas travessuras que me são úteis em vários momentos. Não que tenham utilidade para alguma coisa prática. São úteis, na verdade, para me salvar da seriedade adulta que a vida pede quase que constantemente. Às vezes, ser um moleque peralta com tempo ocioso, à procura de aventuras, é o que mais se deseja para que não sejamos engolidos pela mediocridade em que somos obrigados a viver.
Thiago Sobral