Baratas não tem daddy issues.

Me movo em torpor de ônibus, uma barata cruza o meu caminho, escala o meu tórax como uma mancha de terror e pernas.

Ela parece nada ligar para a minha presença, sabendo apenas sobre o tempo e o espaço, sabendo pouco sobre o porquê faz o que faz, e sabendo que a próxima coisa é um algo entre existir e sobreviver. Baratas não tem daddy issues.

Paralisado, sou amigo, quase íntimo. "Periplaneta americana". É assim que as chamam. Meio impessoal. Não, aqui não. Será Radamés se for Homem, Filomena se mulher. Baratas tem gênero, mas não sei o bastante pra poder distinguir.

Tenho medo, pavor, e se ela voar no meu rosto? Me esforço muito pra não respirar nem mexer, a cada chacoalho do ônibus, temo um pouco o meu fim.

Há ao mesmo tempo algo de místico nisso, como uma adaga, um corte no tecido das minhas imagens. Começo a observá-la, a adorá-la como quem olha pro céu e não entende o que vê. Ela não parece tão repulsiva assim, vista de perto. Quando estávamos começando a nos entender, ela voa, vai embora. Radá(ou filó), segue e desaparece pra nunca mais.

Tudo isso dura menos que um segundo, um instante pouquíssimo, uma sombra.

Me sinto quase morto,

mas assustadoramente vivo.