Crônica do Ter
Faz oito dias hoje que me encontrava, imerso em pensamentos e gargalhadas, sentado à mesa do bar, degustando minhas Kryptonitas—Heineken em copos altos, cheias de espuma e promessas. O hipérbole da noite já tinha me levado a algumas taças; eram dez e contando. O bar pulsava com risos e melodias, mas meu mundo era uma ilha particular.
Foi então que duas jovens, vestidas de sonhos e despreocupações, cruzaram meu campo de visão. Uma delas, com um olhar provocador, disparou: "Quem toma Heineken tem dinheiro." Eu, alheio à provocação, apenas sorri para a minha cerveja. A conversa entre elas fluiu, e as palavras se transformaram em risadas na praça em frente, onde o tempo parecia hesitar.
Mas o olhar daquela jovem, curioso e insistente, não me deixou em paz. Num impulso, fiz um sinal com a mão, como se quisesse puxar não apenas a sua atenção, mas a curiosidade do universo. Com passos curtos, ela se aproximou. Conversamos por cinco minutos, um instante que parecia dançar entre o trivial e o inusitado.
A pergunta que se seguiu, direta e sem rodeios, cortou o ar: "Você tá de carro ou de moto?" Olhei para o lado e apontei, com um sorriso maroto, para a minha bicicleta, reluzente sob a luz do bar. A reação dela foi instantânea; um olhar de desprezo, como se a liberdade em duas rodas fosse um pecado. "Peraí", disse, antes de se voltar para a amiga, e juntas, como folhas levadas pelo vento, desapareceram na noite.
E eu? Continuei ali, cercado pelo som da música que embriagava a atmosfera, saboreando minhas Kryptonitas, refletindo sobre como, às vezes, o simples ato de "ter" se entrelaça com o ser. O que é ter, afinal? Uma cerveja, um carro, uma moto, ou a liberdade de pedalar sob o céu estrelado?
Naquele instante, percebi que o verdadeiro valor não estava no que eu possuía, mas na escolha de viver cada momento com autenticidade. Enquanto a música preenchia o ar, me deixei levar pela ideia de que a vida é feita de pequenos encontros, de olhares que se cruzam, e de histórias que, mesmo breves, têm o poder de nos ensinar que o ter muitas vezes é muito menos importante do que o ser.
E assim, permaneci ali, brindando à simplicidade, à vida, e, acima de tudo, ao prazer de simplesmente existir.