Entre Sem Bater - Os Vilões e os Mocinhos
Jodie Foster disse:
"... já vi muitos vilões bem-sucedidos no mundo real... mas jamais os vi em paz de espírito ..."(1)
A atriz e produtora Jodie Foster, com toda a certeza, tem posicionamentos firmes e com alto grau de engajamento político. Certamente, as produções nas quais atua ou dirige, o viés de aproveitamento da realidade contém muitas doses de política. A crítica aos comportamentos extremos da sociedade, que produz vilões em maior quantidade, são a vida real e não a arte nas telas.
A VIDA IMITA A ARTE OU ...
Anteriormente, a discussão filosófica ainda tinha espaço para troca de ideias e avanço no conhecimento. Muito se debateu sobre se a vida imita a arte ou arte imita a vida. O cinema era a principal ferramenta e tecnologia para que os autores e roteiristas retratassem a realidade, até escrevendo uma ficção(2). Entretanto o mundo mudou e a discussão sobre quem imita quem ou quem são os vilões e mocinhos perdeu-se na história.
Assim sendo, o pensamento de Jodie Foster, sobre o papel dos vilões, está num resumo lapidar da frase-chave deste texto. Com toda a certeza, determinar quem são os vilões e os mocinhos, atualmente, é impossível.
VILÕES E MOCINHOS
Desde que surgiu do cinema mudo, vilões e mocinhos desempenham papéis fundamentais na narrativa cinematográfica. Inquestionavelmente, há décadas, ajudam a moldar o imaginário coletivo, e porquê seria diferente nestes tempos modernos.
Contudo, é preciso contextualizar esse confronto clássico que remonta às origens do cinema e mantém-se como um dos pilares de muitas produções atuais. Em outras palavras, funciona como uma ferramenta poderosa para contar histórias e transmitir valores em qualquer mídia.
No cinema mudo, a divisão entre vilões e mocinhos era evidente, objetiva e simples. Certamente porque as limitações tecnológicas permitiam uma comunicação visual direta e acessível. A linguagem corporal, os gestos bruscos e as expressões faciais eram essenciais para que o público identificasse rapidamente quem era do bem. Por outro lado, os símbolos dos representantes do mal, eram caricatos e muitas vezes preconceituosos.
Clássicos como The Perils of Pauline (1914) e The Birth of a Nation (1915) colocavam o herói virtuoso em confronto com antagonistas malévolos. Estas produções reforçavam, sem dúvida, a noção de que o bem sempre triunfaria sobre o mal. Os vilões eram, em sua essência, caricaturas que encapsulavam o que a sociedade daquela época considerava uma ameaça ou um perigo.
COM SOM É MELHOR
Com o avanço das técnicas de filmagem e o surgimento do som no cinema, essas dinâmicas ganharam sofisticação. Nos filmes de faroeste, por exemplo, o “mocinho” geralmente era o cowboy solitário(*) que trazia justiça ao caos do Velho Oeste. Por outro lado, o vilão era, frequentemente, um fora-da-lei, um líder corrupto, um manipulador. O duelo final, muitas vezes ao pôr do sol, simbolizou a vitória do bem sobre o mal ou dos mocinhos sobre os vilões.
A arte imitava a vida, pelos roteiros de gente que fazia seu proselitismo sem limites e sem amarras.
Nos filmes de super-heróis, que explodiram em popularidade a partir da década de 1970, essa estrutura de vilões e mocinhos chegou ao extremo. Super-heróis, como Superman e Batman, personificam uma moralidade inabalável e, frequentemente, destroem os vilões. O sucesso(3) do herói associa-se a valores como justiça, coragem e sacrifício, de acordo com o desejo das classes dominantes.
Uma narrativa de vilões e mocinhos nas produções cinematográficas também serve como uma metáfora para conflitos sociais e políticos. Desta forma, a vitória dos heróis representa que a esperança e as forças do bem prevalecem nas situações mais difíceis, mesmo que sem ética.
Em filmes mais contemporâneos, no entanto, esses papéis são mais ambíguos e de difícil discernimento. Subliminarmente, reproduzem um mundo onde os limites entre o bem e o mal nem sempre são claros e com moralidade. Contudo, ao final ou aos olhos da patuleia o sucesso do mocinho ainda é uma mensagem recorrente. Infelizmente, crianças se orgulham de se vestir fantasias desde "heróis" com o apoio e incentivo de papais sem noção.
O SUCESSO DOS VILÕES
O pensamento de Jodie Foster é uma espécie de proselitismo e alerta sobre vilões e mocinhos, realidade e ficção, vida e arte.
"Não, pessoal, não sejam ingênuos. O mal nem sempre paga seu preço. Na verdade, muitos daqueles que fazem coisas terríveis prosperam. Você vai vê-los triunfar, vai vê-los alcançar as melhores oportunidades e colher os maiores frutos. Esse é o mundo real, duro e cruel. Mas se isso for algum consolo, posso garantir uma coisa: já vi muitos vilões bem-sucedidos no mundo real... mas jamais os vi em paz de espírito." Jodie Foster
Entretanto, serve de alerta para ingênuos e neófitos que ficam propagando algo sobre justiça divina e dos homens. Não, meu senhores, a produtora-atriz está certíssima, não se enganem com o sucesso ou o fracasso. A maioria das pessoas, com toda a certeza, trabalham atualmente para ter sucesso, mesmo efêmero, passando por cima de outras pessoas. É provável que o desvio de caráter(4) de cada vilão transformou-se numa qualidade que as pessoas adoram.
PAZ DE ESPÍRITO
A frase de Jodie Foster apresenta uma reflexão profunda sobre a dissociação entre sucesso e bem-estar interior. Ela traz à tona um contraste marcante entre a prosperidade material e a paz de espírito. Raramente, as narrativas exaltam as conquistas meritórias e importantes, substituindo-as pelas superficiais e inconsistentes.
No entanto, o pensamento da atriz também ressalta um ponto fundamental: o sucesso, muitas vezes, não acompanha um senso de justiça ou moralidade. De fato, vivemos um dos maiores dilemas da sociedade e suas mídias sociais modernas e corruptoras. As narrativas sobre mocinhos e vilões possuem fluidez e são formas de manipulação completamente sem controle.
MIDIAS MODERNAS
A influência das mídias modernas, especialmente das redes sociais, desempenha um papel crucial na construção dessas narrativas. Com a ascensão dos influenciadores digitais, subcelebridades e figuras públicas, o conceito de "mocinho" e "vilão" ficou difuso. O que se definia com base em princípios éticos e morais claros, agora molda-se pela popularidade. Como se não bastasse, o número de seguidores e a presença midiática determinam o poder de cada herói-ídolo de barro. Desse modo, o nível de sucesso de uma figura pública não vincula-se às suas ações morais ou éticas. Com toda a certeza, alinha-se à sua habilidade de gerar engajamento, de viralizar e de se destacar em um mundo insano de desinformação.
Nesse cenário, não é incomum observar a ascensão de indivíduos que, apesar de praticarem atividades ilícitas ou imorais, são ídolos. A veneração das "proezas" destes elementos ganham ares de exemplo a seguir. E, eventualmente, de alguma forma misteriosa, se tornam heróis ou figuras de autoridade.
O Brasil e o mundo vivem uma preocupação alarmante. Criminosos e pessoas de caráter duvidoso, graças à sua influência midiática, conseguem transformar sua imagem pública, angariando apoio popular. Por isso, tornou-se "normal" estes verdadeiros vilões se eleger para cargos públicos de forma massiva.
A construção dessas narrativas emerge pela facilitação da superficialidade e instantaneidade das redes sociais. Surpreendentemente, uma pessoa pode receber o rótulo de “herói” ou “vilão” em questão de minutos ou segundos. Inexiste, sem dúvida, uma análise crítica mais profunda de suas ações e consequências, e não tem volta depois que o rótulo torna-se viral.
HERÓIS MODERNOS
Esses "heróis" modernos, muitas vezes criminosos ou indivíduos moralmente ambíguos, utilizam-se das mídias para forjar uma imagem ideal. Com o tempo, o público se vê envolto em um paradoxo: e acredita que o sucesso dessas figuras justifica-se, de alguma forma, pelas aparências. É assustador como a maioria das pessoas aceita estes heróis, independentemente dos meios pelos quais eles chegaram no topo. As redes sociais amplificam, sem dúvida, essa tendência, promovendo uma cultura de celebração de figuras controversas e perigosas.
Casos recentes, como da influenciadora Deolane e de sua advogada, suscitam dúvidas em seguidores sobre a verdade dos processos criminais.
O impacto dessa mudança de valores é devastador e irreversível. Quando criminosos influenciadores alcançam o status de heróis, o senso de justiça e moralidade da sociedade claudica. O conceito de bem e mal se torna subjetivo, fluido, sujeito a manipulação por aqueles que têm poder e visibilidade midiática. Nesse cenário, o que deveria ser ato de vilões recebe abordagens como se fossem dos heróis ou mocinhos. Enquanto isso, muitas vozes que lutam por justiça e ética sofrem o abafamento ou desprezo.
O SUCESSO - HOLLYWOOD
Anteriormente, existia uma marca de cigarro de nome Hollywood. Suas propagandas sempre tinham como slogan e aparência o sucesso. Aqui, a referência não poderia ser mais absurda ou fora de propósito, mas o atual momento reproduz estas ideias com velocidade e eficácia.
Embora a frase de Jodie Foster enfatize que esses vilões possuem, eventualmente, paz de espírito, esta reflexão traz à tona outras questões. Vivemos a ilusão de que alguma justiça divina ou até mesmo dos homens sempre aparecerá no final. Devemos considerar que, mesmo com sucesso material ou poder aparente, os vilões estão vencendo. Raramente, os indivíduos que constroem suas vidas sobre injustiças e manipulações colhem consequências de suas ações.
Enfim, as mídias modernas têm a responsabilidade de contribuir para a construção de narrativas com mais equilíbrio. A manipulação e glorificação de crimes e figuras de caráter questionável estão garantindo o sucesso para essas figuras nefastas. Inquestionavelmente, a curto e a longo prazo, eles comprometem profundamente os valores éticos de uma sociedade. A construção de heróis deve, mais do que nunca, se fundamentar em ações, princípios e virtudes que tragam justiça e paz para a coletividade.
Nossa sociedade nunca mais será a mesma, ainda mais se enfurnar em dogmas e crenças religiosas de justiça divina e arrependimento.
"Amanhã tem mais ..."
P. S.
(*) O termo cowboy designava uma personalidade e comportamento muito ruins. Na realidade, eram vilões e criminosos e não tinham nada do glamour que muitos imaginam atualmente, mas isso é outra história.
(1) "Entre Sem Bater - Jodie Foster - Os Vilões e os Mocinhos" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/09/17/entre-sem-bater-jodie-foster-os-viloes-e-os-mocinhos/
(2) "Entre Sem Bater William Faulkner - Ficção e Realidade" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/08/20/entre-sem-bater-william-faulkner-ficcao-e-realidade/
(3) "Entre Sem Bater - Bill Gates - O Sucesso" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/11/09/entre-sem-bater-bill-gates-o-sucesso/
(4) "Entre Sem Bater - Coringa - Desvio de Caráter" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/05/11/entre-sem-bater-coringa-desvio-de-carater/