Lar de idosos XXI

E a filha fez a primeira viagem depois que a mãe morreu.

Focou os 50% do que ela tem de vivo nela mesma na viagem. Sim, só 50% está vivo... o suficiente pra passar pelos dias... pra passar pelo tempo que lhe resta nesta vida.

Trágico? Talvez... não, ela não está assim por causa da morte da mãe... não por exclusivamente isso... o que a matou em 50% foi a forma como tudo aconteceu... mas isso ela ainda não consegue relatar. Está engasgado na garganta e só o tempo dirá quando ela conseguirá colocar pra fora.

Bem... viajou... e simplesmente focou toda sua energia, seu olhar, seu respirar, seu corpo, seu coração, sua mente na viagem. A mãe desapareceu completamente de seus pensamentos... não precisou nem tomar Inderal - porque o coração em momento algum bateu descompassadamente.

São Paulo é a cidade pra onde a filha foi. Bienal Internacional do Livro seu destino. Gente, gente, muita gente... livros pra todo lugar... escritores amigos... novos amigos... lançamentos, gravações, fotos, vídeos... foi muita coisa mesmo. E foi bom. A cabeça da filha estava leve e o coração também. Ela realmente se entregou de corpo e alma à literatura nos quatro dias que ficou em São Paulo.

Seu voo de volta era no domingo à tarde. Fez check-out ao meio-dia. Chamou um Uber. E partiu para o aeroporto. No caminho conversava com o o motorista sobre os moradores de rua... centenas deles. Ela tinha ficado verdadeiramente impressionada. O motorista do Aplicativo contou histórias sobre a Cracolândia... falou sobre como é viver em uma das maiores metrópoles do mundo. Ela ouvia atentamente.

Um som de uma ambulância ao longe... que foi se aproximando. Ela ficou surda ao que o motorista falava. Uma nuvem negra a circundou totalmente. Sua mente divagou e ela viu a imagem da mãe na ambulância... e mais uma vez na ambulância... e mais uma vez: a última... quando saiu da clínica depois de ter caído (na clínica) pela terceira vez... e morrer no hospital.

A memória afetiva que ela tinha de som de ambulância era de Nova Iorque. Claro que ela sabe que ambulância à vista 99% das vezes é por algum motivo ruim, trágico, de doença e morte... tem uma porcentagem que equivale a um bebê que está chegando... Mas era um som de uma cidade que ela ama.

Agora, se deu conta ela, de que o som da ambulância está ligado ao descuido de pessoas que se comprometeram a cuidar da mãe... e recebiam pra isso. E não fizeram sua parte. Foram negligentes. E isso dói nela. E nada, absolutamente nada do que ela fizer vai desconectar essa memória auditiva do acontecido.

Morrer... todo mundo morre... e todo mundo sabe disso. Agora morrer porque alguém deixou de olhar com cuidado que deveria ter um ser humano... isso é o que matou 50% da filha.... e continua matando cada dia um pouquinho mais.

E a filha chegou à sua cidade... pela primeira vez a mãe não estava nela... Essa chegada também não foi a melhor coisa do mundo.

Mas por hoje é só.

Rosangela Calza
Enviado por Rosangela Calza em 16/09/2024
Código do texto: T8153035
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