Sandices II

Imagine uma artrodese tão mal executada que, em menos de um ano, o procedimento configurava fracasso total, causando na paciente um comprometimento maior do que aquele que originou a necessidade cirúrgica. E imagine, se puder, que o conserto veio ainda mais invasivo, abrindo-a pela frente e por trás — pela lombar e pelo estômago — de forma que, sem hipérbole, um braço poderia entrar por um lado e sair pelo outro. E você nem foi assistir ao Copperfield…

Sempre falhei como filho. Sei disso. Mas ali, naquele específico e curto tempo, acreditando que ela morreria, tornei-me o melhor da prole, conectado ao passado por um inocente sentimento de perdição absoluta — uma criança cuja vida é inconcebível sem a mãe — e esperei de pé junto, durante nove longas horas, para que a fortuna me poupasse do arrependimento perpétuo.

Esses súbitos raspões com a tragédia são capazes de revelar o fervor religioso escondido no mais cético dos homens, e até eu, que duvido da minha própria sombra, julguei-me abençoado pelas eventuais boas notícias. Enquanto voltava para casa à noite, na chuva forte, carregando três sacolas enormes que escorregavam dos ombros e caíam na calçada alagada, juntamente com a minha calça (pois tinha esquecido o cinto), pensei: “Meus pecados enfim foram pagos. Que eu seja puro agora — puro.”

Não tive muito sucesso. Civilizações arruinadas se reerguem após períodos de intensa guerra, substituídas pela geração emergente que jamais sentirá seus efeitos; similarmente, essa sublime consciência existencial, inflamada quando parecemos propensos a perdê-la, murchou na semana seguinte… E meu broto de gratidão feneceu desidratado, obscurecido por alguma banalidade que decerto esqueci.

Descobri, contudo, que sou mais supersticioso do que supunha, e, tendo conseguido o que queria, já não rezo às estrelas antes de dormir.