Quintal
Os labirintos de minha memória, me transportam para os becos da vila, que passei parte de minha infância, entre sonhos e anseios. Experimentando desde cedo a solidão. E exercitando a imaginação que fazia força para escapar da realidade sem cores. Aos poucos, fui aprendendo a encontrar beleza nos detalhes, ou até mesmo inventar uma beleza que não existe, por pura sobrevivência.
Lembrei da sensação do cigarro de tia Zilda encostando em minha pele, foi sem querer, enquanto ela jogava baralho com outras tias, bebericando um copo de cerveja e eu ali distraída, ao observar. Até que tia Zilda percebeu que o cigarro me queimava e se espantou, por ter me queimado e por minha resiliência em aceitar ser queimada. Não gritei, eu apenas sinalizei, com poucas palavras e pequenos gestos o que ocorria. Mas eu chorei com o espanto de tia Zilda, que me magoou mais que a dor. Sendo exposta a minha falta de atitude perante o que me incomodava, chorei somente após o fato, que devia ter me feito gritar de dor, mas minha dor foi maior enquanto ela gritava, por que você não falou nada?
Neste quintal também, um dia vi um monstro, cruel e assustador, saindo de um videocassete. Eu percebi imediatamente sua crueldade, e corri para bem longe. Essa imagem ficou tão viva em minha mente, tão real, que por muitos anos duvidei se era mesmo apenas um sonho de criança. E agora me pergunto, o que esse monstro do sonho, tão real, representava da realidade. Puxo pela memória e nada encontro, talvez sabiamente um monstro bem real tenha sido deletado.
Não tive muito joelho ralado, pois fui uma criança que na maior parte das vezes cuidava de sua integridade física. Mas um dia despenquei de uma árvore de jambo, que tentava escalar com outros primos, e cheguei na casa de minha avó, para seu desespero e de uma de minhas tias, chorando cheia de cortes, sendo o maior deles no joelho, que inevitavelmente sangrava.
Tenho a lembrança de outro sonho muito estranho e fantasioso, eu estava no colo do meu pai e minha avó estava ao nosso lado, eles conversavam, de repente começou uma ventania muito forte e objetos começaram a subir, entre eles o arco que estava no meu cabelo, e eu senti muito medo, porque pressentia que o vento me levaria também, para bem longe dali.
Havia também medos reais, como das ratazanas gigantes que passavam de um lado para outro pela parte mais escura do quintal e tínhamos que atravessar correndo. Lembro também das mulheres sentadas em cadeiras de praia no fim da tarde, cortando legumes, catando feijão e falando da vida alheia. Uma forma de passar o tempo, que passava bem devagar.
Tive também uma prima, que por alguma razão, tinha uma agressividade desmedida e adorava empurrar outras crianças por trás, enquanto estavam distraídas, e não suportava ser contrariada, apelando para puxões de cabelo, beliscões e mordidas. Eu era uma das vítimas preferidas e voltava chorando para casa, onde uma das minhas tias que não aceitava desaforo, ficava revoltada com meu choro e me invetivava a voltar lá e revidar. Coisa que nunca consegui. Até um dia que um outro primo que eu gostava muito puxou meu cabelo, e o espanto e a decepção me fizeram o puxar o dele também.
O que eu não sabia, é que o quintal que crescemos, fica eternamente gravado em nossa memória. É o local que invariavelmente sempre retornamos, principalmente quando seguimos por esses labirintos inconscientes. O primeiro grupo de humanos que convivemos, com suas festas, suas rixas, seus rituais, suas loucuras. E há tanto para desvendar dele. Há quintais floridos e outros de puro concreto. Não importa seu formato, será sempre nosso primeiro quintal, aquele que retornaremos infinitas vezes em lembranças, medos, saudades e ao qual somos eternamente responsáveis, por sua constante transformação, até que seja um quintal em que enfim possamos descansar em paz, sem tanta vontade de ir embora.