Cada um com os seus problemas

 

"O PIOR

O pior dos problemas da gente é que ninguém tem nada com isso" - Mário Quintana, Caderno H, página 9.

 

Comprei essa edição (a 4ª, revista, de 1983) de capa laranja do Caderno H, que há muito procurava, num sebo da rua General Câmara, em Porto Alegre, como escrevi numa crônica anterior, recente. Uma baita duma verdade, isso, mas não no sentido de quando o falamos, mandando as pessoas cuidarem de suas vidas e deixarem a nossa pra gente, mas sim no sentido em que o poeta fala, ou seja, de quando precisarmos das pessoas, isso não será realmente problema delas. Traduzindo: a gente que se dane. Oh, mundo cruel, verdadeiramente cruel.

 

Tu saca essas coisas quando um cara que tá bem mal das pernas bate na tua porta pedindo ajuda, pois não tem ninguém por ele nessa hora e precisa de uma mão amiga, principalmente se ela tiver segurando algumas notas de real. Tu olhas para o Céu e Jesus tá lá, só te observando: "E aí, tu não diz que é cristão, que Eu sou O Caminho, A Verdade e coisa e tal? Então te coça aí e ajuda o cara". Tá, tu sabe que o cara tá mesmo precisando, embora muitas vezes o cara plantou esse isolamento e, bem feito, tá colhendo; noutras, a família é perversa mesmo ou, pior dos piores, inexistente, ou seja, o ralado não tem ninguém mesmo por ele. Só que Jesus não quer saber dessa conversa mole, realismo mundano egoísta, ainda mais vinda de um cristão. "Viver é muito perigoso", falou o Riobaldo Tatarana.

 

Aí tu saca a grande bosta que esse mundo pode ser. "O mundo, pra uns, é ideal; pra outros desespero" - Cecílio Rocha. Tu estás xarope com uns parentes xaropes, que te sacaneiam e depois vem pedir trégua, e pensa que o mundo é cruel. É, mas tem coisa muito muito muito muito muito pior: vá fazer voluntariado no Donbass, em Kursk ou em Gaza, pra ti ver. Lá estão precisando de gente na linha de frente pra abastecer o moedor de carne pro churrasco de gente, cruzincredo. Né, Morin? Parentes xaropes são café pequeno e, desgraça pouca, é bobagem. Melhor é tu ir fingindo que os atura enquanto eles fazem o mesmo, numa convivência cínica e hipócrita, tudo para acomodar pequenos interesses e mesquinhas vantagens familiares, coisas que a terra há de comer.

 

Tá legal, mas só não vão chorar no teu velório, dizer que tu era um cara legal, que até pra cinismo e hipocrisia há limite. Até os FDP hão de ter alguma ética. Ninguém nasce sozinho, mas morrer acompanhado, só se tiver feito pelo caminho amigos e parentes que sejam de fé.

 

O ralado vai embora, levando as notas na mão e agradecendo a ajuda monetária. Jesus, lá de cima, faz um sinal de positivo.

 

Segue o baile da vida, num bar em troca de pão. Somos tão frágeis...

 

"TRECHO DE DIÁRIO

Sempre fui metafísico. Só penso na morte, em Deus e em como passar uma velhice confortável" - Mário Quintana, Caderno H, página 7.