A Reforma 1: Abelhas sem teto
Minha cliente foi viajar antes do início da reforma de sua casa, mas recomendou exaustivas vezes: era necessário preservar o enxame de abelhas jataí que se instalou entre as pedras de revestimento da fachada da casa - pedras essas que, de acordo com o projeto, deveriam ser... removidas! Segundo minha supersticiosa cliente, as abelhas a protegiam de todo o mal. E, segundo pesquisei na internet, essas abelhas, chamadas de indígenas, ou abelhas sem ferrão, produzem um mel singular, bastante mais liquefeito e mais ácido que o das abelhas do gênero Apis, e de sabor levemente azedo. O mel da jataí é muito raro, pois que produzido em quantidade muito menor. Além disso, possui características medicinais espantosas: a lista de benefícios é imensa!
As abelhinhas suportaram bravamente o início da reviravolta da reforma, continuando a se esconder entre as pedras entrando e saindo por um tubinho feito de cera que, habilmente, elas fechavam durante a noite e abriam após o dia amanhecer e apenas depois da temperatura já estar mais alta - isso cerca de 8, 9 horas da manhã. Um verdadeiro ritual, que eu, seu Antonio - o empreiteiro simpático e sempre de bom humor - e todos os pedreiros observávamos encantados.
Precisávamos retirar o enxame de lá a salvo, pois as pedras seriam removidas em breve. Tentei consultar a associação de criadores de abelhas, mas para total desgraça estavam em férias coletivas. A internet não estava ajudando, mandei vários e-mails que não foram respondidos. Eu não podia esperar tanto: fui ao Parque da Água Branca visitar o meliponário na tentativa de encontrar alguém que me auxiliasse...
Passeando por lá, li nas placas sobre a jataí que 93% destas abelhas fazem seus ninhos em ocos de árvore, recorrendo a outros locais, como vãos de pedras e rachaduras em muros, em virtude do avanço da urbanização. Iluminei-me: vasculhei o parque todo na busca de um toco de árvore oco para tentar transferir as abelhinhas...
Achei algo parecido, e fui orientada por um trabalhador do local que deveria passar uma mistura de erva-cidreira e mel no toco, deixando-o próximo do atual enxame para atrair as abelhas. Assim fiz: por dias o tronco oco recendendo a chá de estrada ali permaneceu, mas as abelhas não queriam mesmo deixar seu lar.
E todos os dias, de manhã cedo, a pergunta que eu fazia a mim mesma quando ia à obra era: a jataí ainda tá aí? Via a movimentação das abelhinhas, tranqüilizava-me e continuava meu trabalho.
Por fim, a associação reabriu suas portas. Nove horas da manhã lá estava eu, conversando por telefone com seu Waldemar, um especialista em abelhas jataí. Que, infelizmente, estava fora de SP, em seu sítio onde cria, claro, abelhas. Mas estaria de volta em poucos dias, a tempo de retirar o enxame das pedras e colocá-lo a salvo em uma caixa especial.
Enquanto voltava para o escritório, aliviada, uma ligação: a secretária de minha cliente avisava-me, em desespero, que durante uma manobra mais “radical” dos pedreiros as pedras caíram e a colméia ficou totalmente exposta. Apavorei-me, liguei para seu Antonio, que mais tarde, depois de verificar a situação, me garantiu que as abelhas estavam todas lá (“algumas saíram para ir ao distrito fazer a ocorrência, mas já voltaram”, me disse no seu tom alegre de sempre) e que estava tudo sob controle.
No dia seguinte, desanimada, vi que um tapume fechava a parede, fazendo as vezes de pedra, e do lado havia uma pequena abertura substituindo o tubo de cera por onde elas faziam seu movimentado entra-e-sai. Algumas abelhas voavam por ali, indicando que, aparentemente, haviam resistido à tragédia (“só trocamos a porta da entrada”, ironizava seu Antonio).
Mas a alegria durou pouco. Mais um dia, e seu Antonio me contou que havia visto, logo cedo, o enxame voar todo junto, abandonando o local (“acharam um condomínio melhor, foram seguindo o corretor”). Apavorei-me, pois minha cliente iria voltar naquele dia...
Não dá para registrar a confusão que se instalou. Ela, desesperada, ligando para o especialista, e ele tentando minimizar a tragédia dizendo que, se houvesse ainda alguma movimentação de abelhas por ali, poderia salvar parte do enxame. Mas não havia. A mim, confessou que as abelhas saírem todas voando juntas, depois desse episódio, seria um fato muito raro. Elas passam cerca de 90 dias construindo um novo ninho nas proximidades (a abelha jataí nunca voa a mais de 800 a 1000m de onde está), e só fariam essa revoada em enxame caso a movimentação tivesse se iniciado neste período – o que não é verdade. “Para mim”, ele segredou, “a colônia foi destruída. O pessoal viu a colméia aberta, comeu o mel e depois fechou tudo com o tapume, só para parecer que estava tudo bem”. Faz sentido.
Minha cliente me ligou catatônica. Ficou em silêncio ao telefone, apenas dizendo, com voz sumida, de quando em quando: “Eu recomendei tanto...”. Perdi o sono por causa das tais abelhas. Já havia perdido tempo demais também por causa delas, tentando resolver a situação.
Então, decidi: quando minha cliente for viajar novamente – e só vai voltar quando a obra estiver terminada – vou comprar do seu Waldemar uma caixa especial, dessas bonitinhas, feitas artesanalmente para compor o paisagismo do jardim, com um enxame de abelhas jataí dentro. Custa meio caro, mas compensará as lágrimas da minha cliente e as lamúrias que eu teria que ouvir daqui para frente. E o melhor: seu Antonio se prontificou em rachar comigo a caixa. Não a caixa propriamente dita, mas o valor dela, claro. Afinal, chega de cultivar abelhas sem ferrão e sem teto.