Clarice na cabeceira e no ombro
Ter Clarice na cabeceira é fácil, basta comprar os livros da Clarice Lispector para serem companheiros antes de dormir.
Ter Clarice no ombro é um pouco mais complicado para quem não tem uma filha, neta ou um amor com esse nome. No meu caso ficou fácil, pois tenho uma neta – Clarice Moraes Medeiros - que amo com os exageros próprios de avô. Para diferenciar da escritora, daqui em diante chamarei a neta de Clarita.
Tenho em mãos um livro de crônicas de Clarice, essa exótica mulher que, embora nascida na Tchetchelnik, pequena cidade da Ucrânia, adotou o Brasil como pátria. Folheando o livro, resolvi fazer comparações entre as duas Clarices.
Logo na introdução, Tereza Monteiro escreveu:
- Mas o que é crônica para Clarice? “Crônica é um relato? É uma conversa? É um resumo de um estado de espírito? Não sei”, respondeu.
Para Clarita, crônicas são as que o avô (eu) escreve. Pois narram sobre acontecimentos que ela conhece, ou que viveu.
Muitas delas são histórias de amigos ou parentes que conto no dia a dia. Invenções que ela acredita que sejam verdadeiras.
Sempre que uma sai de minha cabeça, leio para, no final, ouvir dela: “Boa. Muito boa. Que legal.” Ou outro elogio que me deixe contente.
Aparecida Maria Nunes, conjecturando sobre “Banhos de mar”, comenta:
- Clarice tem dessas coisas... é inesgotável.
Clarita também é inesgotável. Gosta de apelidar as pessoas e dar nomes aos animais. Diverte-se e me diverte ao contar seus sonhos noturnos, quase sempre aventuras perfeitas, recheadas de lances atípicos e inusitados. Monstros e carros que tombam de ribanceiras. Fantasias nas quais minha presença é constante e de onde sempre escapo ileso de assaltos, agressões e quedas. Parece que ela quer sempre salvar o mocinho que, no caso, é um velho babão.
Ainda de Aparecida Maria Nunes outra sentença:
- Temos uma Clarice que se deixa viajar no tempo, pelo olhar da menina que fora.
Espero que quando Clarita se tornar adulta e, se por algum motivo afastar-se de mim, eu possa guardar com ternura seu olhar de menina meiga, alegre e carinhosa.
No final da apresentação, Aparecida enuncia:
- Mas o da menina e seu pai em cenas que a memória presentifica. Nos detalhes inauditos desta crônica temos um dos mais expressivos retratos de Pedro Lispector. Um testemunho de apreço e respeito. E de uma Clarice muito, mas muito feliz.
Coloco-me no lugar de pai da Clarita. Apreço, sem preço, o valor dela é imenso. Respeito, falo com o peito, aquele que carrega o coração transbordante de alegria ao estar ao lado dela.
- Clarice Lispector tem mais valor que Macabéa, do que eu, do que você.
Quem afirma é Diogo Mainardi, comentando “Por detrás da devoção”.
Clarita, com certeza, tem mais valor do que eu, que já errei várias vezes na vida. Mais importante que você, também, pelo menos para mim.
Eduardo Portela na apresentação de “Perfil de um ser eleito”, profere:
- É aquela em que você diz ‘Nós somos o que nos falta’.
Eu, em meus devaneios, acredito piamente que Clarita nunca me faltará, para me completar.
Escrevendo sobre o saudoso Armando Nogueira, Ítalo Moriconi em “Armando Nogueira, futebol e eu, coitada”, sai-se com essa pérola:
- Ler Clarice me dá vontade de escrever. Me fazer escorrer a vida, esculpir a vírgula da frase, segurar com rédeas o excesso, vontade sublimada reconcretizada em verbo.
Ver Clarita me faz ser humilde o bastante para fazer o que Ítalo diz e mais um pouco. Se fosse um ás em nosso vernáculo, colocaria palavras difíceis, mas para ela basta o singelo, o puro, o facilmente compreensível. Ela é a musa que não empresto, não dou e não vendo.
Joaquim Ferreira dos Santos sobre “Mal estar de um anjo”, decreta:
- Clarice é sempre a palavra inesperada, aquela que não serve para espelhar uma coisa, uma cena de rua, essas aproximações que o cronista gosta de ter com o cotidiano. Clarice jamais seria cotidiana.
Afirmo, com certeza, Clarita nunca foi cotidiana. Está sempre inventando. Especial e rara, ela sempre conta com meu aval. Eu, que cansava de me repetir, de fazer de novo igual ao que já havia feito, passei a ter atitudes que me diferenciem de outrora, que me renovem diante de Clarita.
Numa tirada de Lícia Manzo em “Se eu fosse eu”, eis que surge a frase:
- Clarice Lispector me ampara.
Em minha consideração digo que:
- Clarita me ampara, e eu a ela. Um defende o outro, como se fosse a si mesmo.
Lícia se despede:
- Um beijo, Clarice. E o meu mais sincero OBRIGADA.
Ela sempre se despede de mim dando vários beijos. Às vezes tenho que dizer:
- Chega Clarita.
Ela ri e me dá mais alguns.
Maria Bonomi coloca as palavras que escutou de Clarice em “Brasília: esplendor”:
- “... há entre mim e Maria Bonomi um tipo de relação extremamente confortadora e bem lubrificada. Ela é eu e eu é ela e de novo ela é eu.”
Posso resumir meu pensamento:
- Eu sou Clarita e Clarita é eu.
Mais tarde Maria Bonomi completa:
- Clarice sabe que a gente sabe. E como sabe!
Em algumas ocasiões tento enganar Clarita com pequenas mentiras. Sei que mentirinhas não são pecados, mas mesmo assim me arrependo e logo desminto. No fundo sei que ela sabe que estou mentindo.
- É através das palavras que elas vivem, assim como Clarice.
Expressa-se, Mariana Lima.
Além das palavras Clarita vive de atos. Ela vive e faz viver com mais intensidade quem dela gosta. As últimas palavras que escutei ontem por telefone foram: “Estou com muitas saudades, vou te dar um monte de beijos”.
Estou esperando esse momento com ansiedade.
Sobre a Crônica, “Cem anos de perdão”, Naum Alves de Souza discorre:
- Escrever uma linha que seja sobre Clarice significa desrespeito, falta de desconfiômetro, privação de prazer, petulância, pecados que merecem o maior dos castigos.
Talvez seja porque ele não se ache um escritor à altura de competir com essa craque da escrita. Exprimir através da escrita sobre Clarita é com respeito que faço. Tenho um prazer imensurável em colocar no papel suas alegrias e suas dúvidas.
Não faço pecado algum e sei que ela me mandaria para o céu, pois não enxerga meus defeitos e eu faço questão de não enxergar os dela.
Continuando a citar Naum:
- A menina Clarice Lispector, seduzida pela beleza e o perfume, roubou as rosas vermelhas de um jardim rico e, cheia de água na boca, as pitangas de um templo presbiteriano.
A menina Clarita roubava flores e me entregava, não sem antes inalar o perfume que elas exalavam.
Nilton Bonder, em “O ato gratuito”, gratuitamente nos diz:
- Clarice é fala tão alinhada com meu coração que qualquer eleição não teria a gratuidade de ser tributo.
Clarita tem todos os sentidos alinhados comigo, sendo que muitas vezes não sei dar o devido valor.
Rosiska Darcy de Oliveira em “As caridades odiosas”, filosofa:
- Clarice não engana Clarice.
Parafraseando Rosiska confirmo:
- Clarita não engana Clarita. Nem mesmo eu consigo enganar Clarita.
Ao ler “Morte de uma baleia”, Silviano Santiago retirou a frase:
- Todos foram recebidos por mim, gemendo de dor como numa festa.
A minha Clarita me deixa feliz e rindo sozinho quando a encontro.
Thalita Rebouças deve ser mãe para anunciar que:
- Adolescentes são tachados de chatos, arrogantes, impacientes e agressivos. Ok, tem um fundo de verdade nisso. Mas a adolescência, vamos e venhamos, é uma fase difícil, complicada.
Sei que é muito egoísmo de minha parte, mas queria que Clarita fosse sempre adolescente. Porque acho mais complicado ainda os adultos, que não sabem guardar um amor para sempre.
Aroldo Arão de Medeiros
23/12/2011