Entre Sem Bater - A Sociologia Moderna

Zygmunt Bauman disse:

"... a tarefa da sociologia é vir em auxílio do indivíduo. Temos que estar a serviço da liberdade. É algo que perdemos de vista ..."(1)

O sociólogo e filósofo Bauman era, acima de tudo, um cético e realista. Raramente alinho-me com os pensamentos de sociólogos contemporâneos. Notadamente, alguns sociólogos com os quais tive e tenho contato, no Brasil não praticam a ideia de que eles devem ajudar a sociedade. Alguns, por exemplo, capitaneiam ações de caridade mas não se afastam de seus castelos de opulência. A sociologia moderna não é, inquestionavelmente, melhor do que o que praticavam na Idade Média. Entretanto, não devemos tomar ao pé da letra e dizer que ideias como a modernidade líquida(*) não são excepcionais, pois são.

A SOCIOLOGIA

A sociologia é a ciência que estuda a sociedade e as interações entre os indivíduos e grupos que a compõem. Desse modo, os estudiosos do tema buscam compreender as estruturas, dinâmicas e as mudanças sociais da humanidade. As raízes desta ciência estão presentes no pensamento dos filósofos pré-socráticos. Com toda a certeza, eles não tratavam da sociedade como a sociologia moderna aborda e desenvolve. Eles abordavam questões fundamentais sobre a ordem, a justiça e o papel do indivíduo na coletividade.

Os pré-socráticos, como Heráclito e Parmênides, começaram a explorar a ideia de mudança e permanência em ambientes coletivos. Assim sendo, conceitos que mais tarde influenciariam a compreensão do desenvolvimento social eram base de estudo. Heráclito, com a afirmação de que "tudo flui", sugeria a ideia de que a realidade, e por extensão a sociedade, está em constante transformação. Parmênides, por outro lado, enfatizava a estabilidade e a permanência, ideias que contrastavam com as de Heráclito. Contudo, foram ideias que abriram espaço para debates sobre a continuidade das instituições e tradições sociais.

Com Sócrates, Platão e Aristóteles, o pensamento filosófico começou a se aproximar mais das questões sociais. Sócrates questionava as normas e valores da sociedade ateniense, propondo uma reflexão crítica sobre a moralidade e a justiça. Platão, em "A República", esboçou uma sociedade ideal, discutindo a organização social e o papel dos indivíduos nela. Aristóteles, por sua vez, abordou a sociedade como um sistema político e econômico. Explorou conceitos como cidadania, justiça distributiva e, sem dúvida, a importância das instituições para o bem comum.

IDADE MÉDIA

Durante a Idade Média, o pensamento social teve fortíssima influência e predominância da teologia cristã. Filósofos como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino integraram a filosofia grega com o pensamento cristão. Desta forma, discutiam a ordem social como uma manifestação da vontade divina. No entanto, foi apenas com o Renascimento e, posteriormente, o Iluminismo, que as bases para uma sociologia mais sistemática se estabeleceram.

O Iluminismo, com pensadores como, por exemplo, Montesquieu, Rousseau e Voltaire, trouxe uma crítica à sociedade, que inexistia. As instituições sociais tradicionais, como a monarquia e a Igreja, receberam as ideias de igualdade, liberdade e direitos naturais. Montesquieu, por exemplo, em "O Espírito das Leis", analisou a relação entre leis, costumes e climas. Deste modo, ele buscava entender e explicar como diferentes fatores influenciam a organização social. Rousseau, em "O Contrato Social", propôs a visão de que "o poder emana do povo", influenciando posteriormente o pensamento sociopolítico.

A culminação desse período de reflexão sobre a sociedade se deu na Revolução Francesa. Desde que instalou-se a Revolução impulsionou o surgimento de uma nova ordem social baseada em princípios de igualdade e cidadania. Neste contexto, abriu-se o caminho para o desenvolvimento da sociologia como uma ciência independente no século XIX. O surgimento de personagens como Auguste Comte, organizaram o estudo da sociedade, consolidando a sociologia como disciplina.

SOCIOLOGIA MODERNA

A obra de Zygmunt Bauman, a partir da ideia de "modernidade líquida", oferece uma perspectiva sobre as transformações sociais na vida contemporânea. Para Bauman, a modernidade sólida – das instituições estáveis e valores coletivos, como o bem comum – deu lugar a uma modernidade líquida. Desta forma, todas as estruturas sociais adquiriram fluidez e fragmentações que criam um mosaico desconexo. Nesse contexto, a promessa de progresso e coesão social, que a sociologia moderna buscava, mudou de foco e objetivo. Em outras palavras, corroeu-se pela prevalência de tendências individualistas, hedonistas e narcisistas, que a era digital tornou exponencial.

Na modernidade líquida, o que antes era estável e previsível, como instituições, tradições e papéis sociais, caracteriza-se por uma constante incerteza. O individualismo, fortalecido por uma lógica de mercado que valoriza o sucesso pessoal e o consumo como forma de identidade, transformou as relações sociais. A ideia de um projeto coletivo de evolução da sociedade, central para a sociologia moderna, parece cada vez mais distante. O bem comum, uma preocupação primordial das teorias sociais tradicionais, obscurece-se pela busca de gratificação imediata e de afirmação individual.

SOCIEDADE DIGITAL

Com o advento da sociedade digital, esse cenário se intensificou. As plataformas online incentivam comportamentos egocêntricos, onde a construção da imagem pessoal se tornou um objetivo central. Redes sociais, como Instagram e Tik Tok, promovem uma cultura de visibilidade e performance constante. Com toda a certeza, é a cultura onde os indivíduos têm incentivos para exibir suas vidas de forma ideal e irreal. Esse fenômeno alimenta o narcisismo, transformando a vida social em um espetáculo de autoafirmação e comparação. A busca por likes, seguidores e validação instantânea substitui os antigos laços de solidariedade e pertencimento comunitário. Assim sendo, impera e evolui uma cultura de superficialidade e competição.

O hedonismo, igualmente, ganhou nova relevância. A modernidade líquida consubstancia-se pela efemeridade dos prazeres e pela lógica do consumo instantâneo. A felicidade, com vinculação a um projeto de longo prazo ou ao bem-estar coletivo, é agora como uma sensação fugaz. Atrela-se, frequentemente, à aquisição de bens ou experiências que proporcionam prazer momentâneo. O sucesso e o valor de um indivíduo mede-se, surpreendentemente, por sua capacidade de consumir e exibir esses consumos. Assim sendo, reforça-se a alienação em relação às questões sociais mais amplas.

MODERNIDADE LÍQUIDA

A promessa da sociologia moderna de uma evolução em direção ao bem comum, com progresso coletivo e coesão social inexiste. É provável que essa teoria gera na sociologia moderna uma fragmentação da vida social irreversível. O ideal de uma sociedade viva em torno de princípios comuns cedeu espaço a uma multiplicidade de microcomunidades. Em outras palavras, prevalecem os grupos e comunidades que se conectam por afinidades temporárias e interesses pessoais. A era digital amplificou essas dinâmicas, criando bolhas e polarização, onde as visões de mundo guiam-se por algoritmos e  personificações.

Dessa forma, a modernidade líquida e a era digital colaboraram para dissolver os ideais de evolução social coletiva e bem comum. Promovem, outrossim, uma sociedade com centralização no indivíduo e em seus prazeres imediatos. O egocentrismo, o hedonismo e o narcisismo são sintomas dessa nova configuração social. Por isso, nos afastamos cada vez mais da noção de solidariedade e responsabilidade coletiva, pilares da sociologia clássica.

Surpreendentemente, temos no Brasil um sociólogo que chamou aposentados(2) de vagabundos, e ele aposentou-se precocemente. Por outro lado, a desigualdade social(3) no país escancara como a modernidade líquida no Brasil é como água e óleo. Mas podemos, afinal, ter a certeza de que os sintomas mórbidos(4) da sociedade moderna tiveram diagnósticos precisos de Bauman. Em suma, a tarefa da sociologia deixa de atingir seus propósitos a cada nova tecnologia ou rede social moderninha e esfuziante.

"Amanhã tem mais ..."

P. S.

(*)  Alguns pensamentos de Bauman, até mesmo por sua contemporaneidade, são extremamente aplicáveis na sociedade digital. A modernidade líquida ou fluída é o lema central das redes sociais.

(1) "Entre Sem Bater - Zygmunt Bauman - A sociologia Moderna" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/09/05/entre-sem-bater-zygmunt-bauman-a-sociologia-moderna/

(2) "Entre Sem Bater - FHC - Os Aposentados" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/03/05/entre-sem-bater-fhc-os-aposentados/

(3) "Entre Sem Bater - Jessé Souza - Desigualdade Social" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/08/23/entre-sem-bater-jesse-souza-desigualdade-social/

(4) "Entre Sem Bater - Gramsci - Sintomas Mórbidos" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/03/16/entre-sem-bater-gramsci-sintomas-morbidos/