Histórias de barbeiro
Eu tinha um cabelo black power, quando começava crescer, meu pai me mandava logo cortá-lo. E a partir daí começava o sofrimento; depois que o barbeiro cortava, minha mãe e minha avó nunca se agradavam do corte. Fui crescendo e quando adolescente passei a ficar também insatisfeito por causa da influência das minhas ancestrais. Então resolvi procurar um barbeiro que fizesse um corte que agradasse a mim, a minha mãe e minha avó. Depois de perambular pelas barbearias da cidade não encontrava quem acertasse meu cabelo, os barbeiros achavam de fazer o pé arredondado. Já estava desistindo quando veio da roça um rapaz e instalou-se na cidade; sem muita esperança, resolvi tentar este último. Fiquei surpreso quando terminou e recebi os elogios, cortava muito bem. Só que tinha uma coisa, o homem falava mais que a boca. Perguntava sobre tudo da vida, como eram os meus pais, como viviam, indagava das minhas namoradas, da vida íntima, contava as fofocas dos outros fregueses, obtidas pelas interrogações feitas anteriormente. Só para ter elogios teria que suportar as fofocas e as perguntas do sujeito. Eu sentava na cadeira, ele punha o avental, trincava a tesoura e ia perguntado: “E aí, as namoradas? Seu pai fez roça de milho? Sua mãe comprou uma geladeira nova?... Fulano de tal se separou. Fulano de tal comprou dez cabeças de gado. Outro ficou na miséria” ... e por aí andava a tesoura trincando e sua conversaria. Só muita paciência para suportar o falatório do camarada enquanto usava tesoura, pente, navalha, espumas e águas de colônia.
Fui para Salvador. Entre outras coisas ficaria livre do barbeiro falador. Quando o cabelo cresceu iniciou-se também a peregrinação para o cortar e surpreso não encontrei ninguém que deixasse como eu queria. Quando voltava à minha cidade, estava de cabelo grande e uma das minhas primeiras visitas e aparições era à barbearia do fofoqueiro. Suportava as fofocas e respondia às perguntas com monólogos. “Como está a capital? Tá ganhando bem? Tá estudando? Já arranjou muita mulher por lá? Dizem que as mulher de lá é tudo fogosa! Vai muito à praia?”. Teria que continuar procurando um barbeiro na capital, não aguentava mais ouvir besteira do homem.
De volta a Salvador, num galpão velho, uma barbearia pobre, um barbeiro iniciante. Eu, por um acaso sentei-me na cadeira velha; não era daquelas bonitas que rodavam e que a manivela fazia subir; era uma cadeira onde se tinha medo de sentar, dava a impressão que cairia. Como já havia procurado muito quem cortasse como o homem do interior e não aguentava mais o blábláblá dele, fui tentar mais uma vez descobrir quem derrubasse minha mata, porque sou muito persistente, quando encasqueto com uma coisa tento até o fim.
O cara perguntou como eu queria; respondi que só não fizesse V-O, mas cortasse como quisesse e ele trabalhou até o final sem dar uma palavra e para minha alegria deixou-me com um corte melhor do que o outro deixava. Fiquei freguês. Por vezes me dava impaciência com o silêncio do homem; não falava nada, não dialogava; às vezes eu tentava entabular alguma conversa, falar do tempo, o calor, a chuva, o governo e... nada, o cara quase não respondia, quando não me deixava falando sozinho. O jeito era me calar também, mas estava bom, assim é que deveria ser; quando me lembrava do seu colega do interior, eu achava ótimo este novo barbeiro. Não era fofoqueiro, era calado, cortava melhor que o outro e não cobrava caro.
Quando voltava ao interior estava livre de ter de ir à barbearia do falador ouvir suas novidades e não precisava mais responder suas perguntas; tinha coisas mais importantes para fazer, ao invés de suportar o cara; poderia passar mais tempo revendo meus amigos, indo no açude ou olhando a feira que eu gostava de observar. De vez em quando o barbeiro me encontrava e perguntava porque eu não havia aparecido mais à sua tenda; olhava meu cabelo, porque as pessoas notam com mais perspicácia as coisas que se referem à sua profissão; dizia que estava bem cortado e concluía que meu sumiço ocorreu porque eu encontrara um bom profissional em Salvador; no entanto, mesmo fora do trabalho as perguntas e as notícias faziam parte da sua conversa, cortada por mim, com desculpas que necessitava sair, teria que ver amigos, essas coisas e invenções para despistar o sujeito.
O profissional de Salvador ficou sendo meu barbeiro, só que agora eu estava com um problema - era difícil tirar a juba com ele, sua barbearia andava cheia demais, as pessoas que preferissem seus serviços teriam que esperar muito. É! Coisas da vida, não fui somente eu que descobri que o homem era bom, parece que o bairro inteiro percebeu isso. Pensei que agora ele estaria precisando de instalações melhores, achei que já estava na hora de alugar um salão mais espaçoso, mais bonito, deveria comprar uma cadeira mais moderna. Necessitaria melhorar seu padrão de atendimento, afinal cliente também gosta de estética, não somente de competência. Eu poderia até sugerir isto, mas não me atrevi, fazia já um tempo que o cabra me prestava serviços, porém não me dava confiança, aliás, pelo que eu via, ele não gostava de conversar com ninguém mesmo. Quando se convive com uma pessoa muito calada, se tem um certo distanciamento, dá um certo receio de falar algumas coisas, ainda mais quando são coisas que dizem respeito à pessoa. Não se pode prever a reação dela, que pode ser a melhor possível. Pessoas fechadas nem sempre são incompreensíveis, por vezes são incompreendidas. Bem, o fato é que a sugestão não foi dada, pelo menos não por mim, não sei se por um outro mais corajoso.
Depois de um bom tempo, satisfeito com meu barbeiro quase mudo e bastante procurado, fiquei surpreso quando encontrei sua barbearia fechada em um sábado, dia de muito movimento. Até que enfim o cara resolveu mudar para outro lugar melhor, já não era sem tempo. Ele merece, é muito bom profissional, um bom rapaz e o que é melhor, é calado. Por que as pessoas quietas despertam nosso lado paternal? Alguns, por despeito, dizem que os tímidos são na verdade sonsos. Não sei direito que significado querem dar a esta palavra, mas imagino que signifique ladino, traiçoeiro, não confiável. Pode até haver muitos traiçoeiros, porém há pessoas que são de verdade leves, desprovidas de maldade. Bem, se o cara mudou para uma barbearia melhor, ótimo! Agora o local tem mais espaço, é mais bonito e provavelmente a cadeira é acolchoada, roda e levanta.
À pergunta pelo novo local de trabalho para onde me dirigir para desbastar meu black power ouvi perplexo e sem acreditar na notícia que o cara se suicidou pois descobrira a traição de sua esposa. Não era possível! Um cara tão legal! Algumas mulheres não sabem dar valor ao homem bom que tem em casa, já ouvi algumas reclamarem que seus maridos nunca diziam não para elas, nunca as contrariavam, nunca brigavam. Outras reclamavam que o homem era muito calado, queriam ouvir uma palavra de carinho, de elogio, queriam conversar, dialogar e outras diziam que seus maridos eram ótimos fora de casa, com seus amigos, no entanto, com elas eram uma peste. Pode ser que o barbeiro fosse apático até para satisfazer sua esposa. Era uma pessoa calada e talvez não tivesse o costume de desabafar. Não deveria ter um amigo para lhe ouvir. Não poderia viver sem sua mulher. Poderia ter sido traído pelo seu melhor amigo. Sua cabeça teria virado um vulcão. Não teve condição de suportar a vergonha. Vai saber o que aconteceu! Aconteceu e pronto. O rapaz estava morto, cortando o cabelo dos anjos, os anjinhos irrequietos também dariam trabalho como as crianças, porém não teria com certeza a chateação de cortar cabelo de bêbado. E eu lamentei a morte dele e o fato de estar de novo sem barbeiro.
Voltei ao interior, fui à barbearia do fofoqueiro e ele: “Não está mais cortando cabelo com o barbeiro de Salvador?” Eu: “Não”. Ele: “Não?! Por que? Ele não está cortando bem como antes?” E eu: “Não, ele morreu?” “Morreu? Como? Atropelado?” “Não, suicidou-se.” “Suicidou-se?! Por que? Você sabe?” “Descobriu que estava sendo traído” “Não diga?! Era chifrudo?!”. E então tive que voltar a responder perguntas e ouvir as notícias do cara novamente.
Rodison Roberto Santos
São Paulo, 1998