Croniquinha linguística VIII - Metonímias opacas
Metonímias opacas
Saberia o leitor de onde vem a palavra ‘carrasco’? É possível que não. A história mostra que em Lisboa havia um algoz cujo nome era Belchior Nunes Carrasco. Esse personagem passou a designar a terrível profissão.
Saberia o leitor por que ‘pinel’, em nossa língua, é sinônimo de ‘louco’, de ‘desequilibrado mental’? A denominação, saibam, vem de Philipe Pinel, médico francês que se destacou na psiquiatria e propôs um tratamento humanizado para os clientes.
E o que dizer da palavra ‘gilete’? Esqueçamos o sentido chulo e vamos para a lâmina de barbear popularizada por King Camp Gillete. Até o surgimento desse apetrecho, as lâminas eram afiadas e reutilizadas. A partir da ‘gilete’, não é preciso explicar como tudo ficou mais fácil.
‘Despautério’ – não sei se todo mundo sabe – é uma grande asneira. Jean Van Pautern escreveu uma gramática latina cheia de erros absurdos. Um despautério!
Caro leitor, ‘gari’, na origem, é sobrenome de gente. Aleixo Gary foi um empresário responsável pela limpeza urbana na cidade do Rio de Janeiro, no século XIX. É muito fácil perceber que o nome do empreendedor foi associado a seus funcionários.
Vamos lá para o fim do alfabeto. ‘Winchester’ – instrumento que fez ‘sucesso’ na guerra civil norte-americana – é uma carabina inventada por Oliver Fisher Winchester . A arma ficou tão famosa que passou a designar “qualquer outro fuzil de repetição, ainda que de outras marcas”.
Esse pequeno passeio pela origem de expressões está presente na obra ‘A vida íntima das palavras’, de Deonísio da Silva, cuja leitura integral terminei recentemente. É livro antigo – creio que seja coletânea de colunas publicadas em revistas semanais brasileiras –, mas propicia seguramente uma saborosa viagem nesse fascinante universo de pesquisar o que está por trás de formas que se apresentam para nós como totalmente opacas. E é, nesse contexto, que aparece o pesquisador afiado, revelando tantas vezes transparências muito elucidativas.
Notaram que, nas seis palavras citadas, existe uma relação direta entre o nome próprio e o nome comum? Caberia dizer que a popularização do nome próprio acabou por torná-lo comum. Estamos diante de um caso corriqueiro de metonímia – figura pela qual empregamos uma palavra por outra com a qual se acha relacionada, não por semelhança, mas por aproximação.
Certo? Vejam se concordam... ‘Pinel’, o médico, não é semelhante a alguém com algum tipo de ‘patologia’, mas a profissão sugere a doença, fazendo com que se faça a aproximação. Isso é metonímia. Portanto, em ‘Infelizmente, fulano está parecendo meio pinel’, temos, a rigor, uma metonímia. Mas – convenhamos – reconhecível por quem conhece o citado aspecto cultural descrito por Deonísio.
Vejam um exemplo bem mais simples: ‘O futebol brasileiro ressente a falta de novos pelés’. ‘Pelés’, no caso, seriam os grandes craques, que hoje nos faltam. O indivíduo (próprio) está designando toda uma espécie. Uma metonímia, de novo!
Finalizando, quero dizer ao meu eventual leitor que as metonímias que abriram o presente texto, muitas vezes não são inteligíveis com facilidade, mas, certamente, não são desprezíveis... Quem pesquisa o assunto vai incorporando algumas delas ao seu repertório e, quando menos espera, esta a falar sobre o assunto, como eu aqui o fiz.
.
Caberia estudá-las em sala de aula? Grande estudioso da língua portuguesa, Evanildo Bechara sugere estudos semânticos de determinadas expressões numa dimensão histórica, com o objetivo de desenvolver a cultura dos alunos. Chega a citar, por exemplo, entre outros trabalhos, o ‘Tesouros da fraseologia brasileira’, de Antenor Nascentes, no qual se explicam uso de expressões e origem de algumas delas. Sem exageros e nos momentos adequados, faço coro às ideias desse grande estudioso da língua portuguesa. Prova disso? Esta crônica... *
O autor disponibilizou, na Amazon,os seguintes ebooks:
Português – temas variados;
Português – textos, testes & respostas;
Cartas & emails para vários fins.