UM FILME DOS TEMPOS DE CRISTO.

PREPARATIVOS:

Estando no CTI do Hospital da Santa Casa de Misericórdia, desde 28/05/2024, por volta de 21:30 h, quando estava entrando em campo o Fluminense contra o Alianz Lima, no Maracanã e eu deitado na cama vendo TV, quando entraram no meu Box dois jovens enfermeiros que afoitamente me retiraram do meu "conforto", com a notícia tão aguardada:

- Vamos lá, Sr. Vicente, saiu o seu CAT (Cateterismo) que aguardávamos... e foram me passando para uma maca com todos os acessos preservados legados os medicamentos e soros e me agasalhando mais, com cobertores.

Foram empurrando a maca pelos corredores à fora, até os elevadores e adentrando num, foram dando informação ao ascensorista. Vamos para a Hemo. Eu estava no quinto andar e a tal de Hemo era no térreo.

Saindo do elevador mais um passeio por corredores infinitos até entrar por uma grande porta de vidro, chegamos ao nosso destino. Mais umas curvas por salas e ante-salas, estacionaram minha maca num canto e veio uma enfermeira do lugar, que me recebeu e fez minha ficha, dizendo que era para aguardar, pois o médico estava num atendimento e depois viria me buscar. Ainda informou que do outro lado do grande salão frio estava estacionada outra maca com um paciente que terminara seu procedimento e aguardava um tempo, para que viessem buscá-lo para seu quarto, e se retirou dizendo que poderíamos "matar o tempo," trocando ideias" ...

Deitado na maca, bem enroladinho em lençóis e cobertores, não dava para vislumbrar o outro lado do grande salão e ver meu companheiro de cela.

Nessa situação, ficamos eu e ele por cerca de duas horas, nos falando e "trocando figurinhas" sem ao menos nos verem um ao outro.

Por volta de 23:30 h vieram buscar meu companheiro e eu fiquei sozinho mais uns momentos, quando a enfermeira chegou e me disse que chegara minha hora.

A CIRURGIA VAI COMEÇAR:

Sala preparada, médico, assistente e ela. Foi empurrando a maca e entramos na sala onde o CAT seria executado.

Lá, me mudaram da maca para a mesa de cirurgia, me posicionando. A enfermeira, veio e me raspou a área da virilha, por onde seria introduzido o cateter até meu coração.

Após isso, com uma gaze ou algodão encharcado em álcool, limpou a região e o líquido me escorrendo para os "países baixos", queimando tudo, me fez ter uma reação de dor, me retesando todo, ao que ela perguntou: o que foi? Ao que respondi em espasmos: está queimando tudo...

Mas logo passou e prosseguiram com o procedimento. Perguntei as horas e ele me respondeu que faltavam alguns minutos da meia noite. O médico, sentado num nível mais baixo, já estava me cutucando com uma agulha de anestesia, em vários pontos da virilha e ...

Deviam já ter injetado uma droga no acesso da artéria e já não sentia nada, quando o médico disse que iria iniciar a entrada, forçando o cateter para dentro de meu corpo. Não senti desconforto algum.

Nesse ínterim, um braço mecânico, como que de uma grua, se posicionou acima de minha cabeça e foi descendo, como se fosse esmagar minha cabeça. Parou a uns centímetros e desceu uma tela como que de uma TV, pequena e se afastou um pouco, ligando e mostrando cenas de um filme antigo bíblico. Cinco figuras vestidas com trajes da época de Cristo seguiam em fila indiana subindo e descendo pequenos morros de areia de um deserto escaldante e andavam rápido. Subitamente surgia uma cena num mercado onde as pessoas transitando com balaios nos "quartos", uns, e outros com balaios na cabeça coberta por panos, homens e mulheres passavam por barracas onde se vendiam produtos em sacos abertos no chão e pessoas paravam, apalpavam, enchiam as mãos com grãos, cheiravam e voltavam os produtos para os sacos. Soldados com fardamento dos romanos antigos, capacetes de alumínio reluzentes, que refletiam a luz do sol e roupas coloridas de vermelho e amarelo, enquanto as pessoas vestiam mantos ou saiotes marrons ou cremes, homens de barba grande e mulheres de longos cabelos escorridos pelos ombros.

Pensei com meus botões (aliás nem botões tinha, pois estava sem roupa sob um lençol) o que é isto? Esses filme que estão passando para mim, enquanto faziam o tal CAT?

INCRÍVEL, DE OLHOS FECHADOS:

Resolvi abrir os olhos e olhei em volta. Só o ambiente cirurgicamente limpo, a máquina, uma mesa e mais ninguém. Virei o rosto para a tela à minha frente e ele estava acesa mas nenhuma imagem passava nela. Pensei assim, encafifado, Meu Deus, estava assistindo tudo aquilo de olhos fechados... abertos, nada se via. Como o filminho estava bom, resolvi então, fechar os olhos para ver se conseguia ver o tal filminho no formado antigo e meio embaçado que estava passando. . .

Não é que com os olhos fechados continuei a ver as imagens? Os homens subindo e descendo os montes de areia num deserto e andando depressa, um atrás do outro, o sol escaldante, a feira do modo descrito, soldados romanos paramentados e com lanças, se misturando ao povo, até que o médico chamou meu nome: Vicente, tudo bem? Não sei o que ele estava presenciando, a razão de me chamar, mas respondi calmamente: Tudo bem, sem problemas.

Ele então me mostrou naquela mesma tela que passava o filme, com a ponta do cateter, um lugar, um ponto, dentro do meu coração e disse: Veja aqui, essa artéria está entupidinha, não passa nada... Como que um raio me transpassou todo o corpo, da cabeça aos pés, e trêmulo, perguntei ao cirurgião: - Doutor, o Senhor vai me abrir de novo, como fizeram comigo, aqui mesmo na Santa Casa, em 2011, há 13 anos passados e fizeram três pontes, duas safenas tiradas da perna esquerda e uma mamária? A marca em meu peito ainda é visível até hoje em meu peito e as lembranças afloraram pelo perrengue por que passei naquela ocasião.

Ele, percebendo minha reação, foi logo me acalmando e falando que iria concertar aquilo sem problema, daí a pouco. Falou, já sabemos onde está o problema, vamos seguir pesquisando até o fim e voltamos para o serviço daqui há pouco.

E a tela onde eu assistia a meu filminho antigo da época dos romanos, se tornou realidade e eu estava vendo de olhos abertos as cenas que se seguiram:

PASSEANDO NO MEU CORAÇÃO:

Era como a parte da frente daqueles trens antigos que com seus limpa-trilhos, seguia em frente desimpedindo a passagem, jogando para as laterais a sujeira que se acumulava sobre os trilhos. Em certa passagem, a sujeira, o lixo era tanto que lembrava as imagens da TV quando mostrava a situação das ruas nas cidades do Rio Grande do Sul, com pilhas de lixo, móveis, roupas acumuladas nas ruas e que a ferramenta do médico, o cateter, ia empurrando para os lados da rua e limpando por onde passava. Eu não estava entendendo nada, pois que via essas imagens do progresso do cateter como um trem limpa-trilhos, ora de olhos abertos, ora de olhos fechados... uma confusão, até que o médico me chamou novamente e disse: - Pronto, chegamos ao fim, tudo bem. Agora vamos voltar e consertar aquele ponto onde lhe mostrei e desentupir.

Chegando lá, a imagem surgiu mais nítida, como que uma parede rasgada e com um cano velho, embutido.

Aí é que a coisa ficou mais interessante, era como um mecânico (o médico) pedia uma ferramenta à enfermeira atrás dele, com uma caixa de peças no colo.

Passa-me uma xr-3 - agora, doutor? - sim, agora. Ela mexia na sua caixinha e passou uma pecinha como que uma mola de caneta esferográfica, com a ponta do cateter e enfiou no buraco da parede, encaixando-a e preenchendo o vazio. Voltando à moça, pediu outra peça: Passa-me uma xpto, e ela, agora, Doutor? - Sim agora. E uma ferramenta como uma colher de pedreiro lhe foi entregue e ele, o médico, foi batendo, puxando massa de cima e de baixo, fechando o buraco e posicionando a molinha no lugar....

Pronto, beleza, serviço concluído, agora vamos sair...

A SAÍDA:

Foi como um filme rodando de trás para frente, ao puxar o cateter, as imagens passavam ligeiro, deixando para trás uma "pista de corrida" limpinha, que se afinava enquanto nosso "trem limpa-trilhos" se afastava de ré...

Sem que percebesse, já ouvia a voz da enfermeira-ferramenteira, dizendo que faria um tampão coberto com esparadrapo, recomendando que não mexesse aquela perna direita pelo menos por um dia. Perguntei novamente as horas e ela respondeu que era 01:30 h.

A cirurgia começara em maio e só terminara em Junho/2024.

Colocaram-me de volta na maca e me levaram até outra sala me encostando perto da parede, bem coberto e protegido do frio. Eu deveria ficar ali sozinho por mais umas duas horas em observação e em seguida me levariam de volta ao meu leito do CTI, no 5º andar.

Fiquei ali quietinho, ouvindo a conversa de outro enfermeiro, de que iria procurar uma cama e dormir um pouco num outro quarto e ao passo que a enfermeira disse que iria se ajeitar ali ao lado mesmo, pois que estava no trabalho desde as 06 h do dia anterior e pela manhã iria direto para outro hospital começar outro turno de serviço....

Eu ainda raciocinava bem e falei para ela, para que eu ficaria ali por duas horas em observação se todos iam dormir? Não seria melhor eu ficar em observação no meu leito do CTI? Afinal, se não ocuparam meu lugar, pensando que não voltaria, melhor eu ser observado lá. Ela então meio sonolenta telefonou para o 5º andar pedindo para irem me buscar.

Assim aconteceu e em menos de meia hora, fizera minha viagem de volta e estava bem encaixadinho no meu Box nº 5009 lá no CTI do 5º andar.

NOTAS:

Ao sair da sala de cirurgia agradeci ao médico e à enfermeira pelos cuidados que tiveram comigo e perguntei se aquilo que se passara comigo, O filminho dos tempos de Cristo que assisti de olhos fechados e não conseguia ver de olhos abertos era IA (Inteligência Artificial) e desde quanto a Santa Casa possuía aquela tecnologia? Eles se entreolharam e responderam que sim e que já usavam essa técnica há uns dez anos....

Não acreditei completamente não, mas, sem outra explicação, nada mais perguntei.

Após a saída do CTI ainda permaneci mais três dias no quarto, quando tive alta e saí sem qualquer problema, não sofrendo quase nada, comparado ao último internamento em 2011, quando fiquei 24 dias internado e saí de lá com as três pontes e agora mais um stend...

E o Fluminense? Nem sei até hoje o resultado do jogo...

Mas aquele filminho permanece um mistério para mim...

Vicente de Paulo Clemente.