Casa mal-assombrada
Quando criança, eu passava com frequência defronte àquela casa de espanto. Construção antiga, em estilo colonial português, ostentava uma formosura que mesmo com o desleixo e o relaxamento dos proprietários era possível admirar sua beleza.
Estava caindo aos pedaços e, mesmo assim, não havia quem não se seduzisse pela sua arquitetura, embora a aparência fantasmagórica assustasse.
Não entendo porque ela não foi tombada como patrimônio histórico, pois além de antiga, suas linhas arquitetônicas exprimiam uma beleza ímpar.
Acredito que, como protesto, deveria ser tombada pela prefeitura. Nesse caso, estou usando o verbo tombar no sentido de derrubar, fazer cair, deitar por terra, pôr no chão. O abandono em que a casa se encontrava era tal que enfeava a rua e, por extensão, toda a pequena cidade.
Como dizia, quando criança, eu escutava todo tipo de explicação sobre aquela casa e, invariavelmente, todas me causavam pânico. Não conseguia passar na calçada defronte a ela. Se me aproximava, ia para o outro lado da rua.
Alguns diziam que ali morava sozinho um velho muito velho.
Pior, diziam que esse velho tão velho não morava propriamente sozinho, mas junto com centenas de ratos que, além do velho os alimentar, dormiam, na cama, junto com ele.
Outros contavam que uns índios se apossaram da casa e o verdadeiro dono – um coronel muito brabo e valente – invadiu o local e matou os índios, uma um, e os enterrou no próprio quintal, numa vala comum. Os mais maledicentes acrescentavam, que alguns, o coronel enterrara ainda com vida.
Havia os que garantiam ali residir uma velha louca cujo único afazer, dia e noite, era xingar qualquer um que passasse sobre a calçada. Afirmavam que a anciã, nariguda e queixuda, tinha mais de cem anos e sua voz era esganiçada e sinistra, feito os pios macabros das corujas.
Quem passava em frente da casa, jurava ouvir barulhos estranhos de correntes de ferro sendo arrastadas, uivos tristes de lobos e risos desesperados de hienas.
Eu, na minha cabecinha fresca de gurizote, não queria nem pensar naquela casa, muito menos ouvir as histórias tenebrosas que me arrepiavam. Passei a minha infância desviando os caminhos para não cruzar aquele lugar.
Depois de adulto e de muitos anos residindo longe daquela pequena cidade, quando lá retornei tive um ímpeto de visitar a casa.
Sentia que precisava ir até lá para verificar se, realmente, havia perdido o medo daquela morada.
No fundo, imaginava que ela já estivesse demolida. Mas para minha surpresa a casa estava lá. Formosa como menina nova, as janelas abertas e cortinas brancas balançando ao vento. Percebia-se que havia sido recém pintada, com uma cor suave que me lembrou pêssegos maduros. Eu a apreciava da calçada do outro lado da rua.
Alguém a comprara e reformara, deixando-a um brinco.
Provavelmente esse morador nunca ouviu aqueles comentários, pensei, senão jamais a adquiriria.
Decidi chegar mais perto. Quando comecei a cruzar a pequena rua, senti os pêlos de meus braços se eriçarem descontrolados. Será que ainda tenho medo, me interroguei, entre incrédulo e ansioso. Dei mais dois passos em sua direção, mas tive que parar abrupto.
Garanto que ouvi, vindo da janela aberta, um barulho de alguém arrastando uma corrente de ferro.
Aroldo Arão de Medeiros
29/12/2006