Eu era Thiágua - Como conheci meu avô
Meu avô era um grande orador, ao seu modo, mesmo sendo analfabeto. Mal sabia assinar o próprio nome, o que lhe foi ensinado por suas filhas quando eram crianças. No entanto, era um grande contador de histórias. O seu repertório era vasto, colorido e diversificado. Ia desde caçadas e assombrações, até provérbios, ditados populares e Camões. Sim, Luís Vaz de Camões constava do arcabouço cultural e literário de João Francisco Sobral. Nas últimas décadas de sua vida, acho que desenvolveu uma pequena competência leitora. No entanto, o seu letramento era imenso. Ainda assim, penso que nunca pode desfrutar da leitura completa de um livro, embora isso certamente não lhe tenha feito falta ao longo de seus intensos 81 anos de vida.
O que hoje me deixa um pouco triste e melancólico é o fato de eu não ter ouvido tantas dessas histórias quanto gostaria. Nosso primeiro encontro aconteceu tardiamente para ele, embora ainda no final da primeira década da minha infância. Só fui conhecê-lo em seus últimos quatro meses de vida. Ele estava doente, de um mal agudo e torturante. E foi por isso que realizei minha primeira longa viagem. Para ajudar nos cuidados que ele requeria, minha mãe juntou as economias que tinha e partiu com os três filhos mais novos para a Zona da Mata, em Pernambuco. Foi uma jornada de três dias dentro do ônibus da Viação São Geraldo, que nos deixou na pequena cidade de Ribeirão.
Conhecer meu avô foi um desafio, pois eu já sabia de sua fama de durão, sério e rígido. Eu era uma criança acanhada e demorei um pouco para me aproximar. Minha mãe contava que ele costumava olhar nos olhos das crianças e apertar as orelhas para saber que tipo de adulto viria a ser. Fiquei com medo de que a previsão dele sobre mim não fosse das melhores. Mas, se a minha memória não estiver me traindo, o futuro que ele previu para mim não era tão ruim.
Nossa aproximação se deu nas primeiras manhãs de minha estada naquela casa, que tinha cheiro de pai. Acordávamos muito cedo, pelas 5 horas. Meu avô já estava em sua cadeira de balanço, contemplando o silêncio da aurora. Quando fui até ele pedir a “bença”, ao que ele sempre respondia “deus te faça feliz”, me solicitou um copo de água. Atendi prontamente ao seu pedido. Isso se repetiu por todos os quase 30 dias em que estive por lá. Essa minha prontidão me rendeu a alcunha de “Thiágua”, que ele me impôs com humor e graça. Talvez por isso ele tenha feito a previsão de que eu seria um adulto esperto. “Thiágua!”. Bastava que ele pronunciasse esse nome que eu já entendia o recado. Essa palavra soava para mim como vocativo e imperativo ao memo tempo. Trazia implícita a sede de vida que habitava nele, ainda que as forças do corpo o estivessem deixando aos poucos. Gostaria muito de me lembrar do timbre da voz dele, mas a distância de mais de duas décadas não me permite.
Durante as tardes, ele gostava de sentar-se à beira da linha de trem inativa na frente de sua casa. Colocavam ali sua cadeira de balanço e ele acompanhava o movimento da vizinhança. Vez ou outra passava uma boiada que avançava alinhada, rente aos vagões abandonados que frenteavam a casa de João Sobral. Era por isso que vovô sempre guardava consigo um bastão de madeira. Apenas o estendia adiante, como extensão do próprio braço, para que o rebanho desviasse de nós e depois retomasse sua procissão para um destino que eu desconhecia. Essa linha de trem e esses vagões estavam intimamente ligados à vida de meu avô. Durante boa parte de sua existência foi funcionário da Rede Ferroviária. O local de sua morada era ali justamente por ser ele o responsável por aquela parte da malha que cortava a cidade. Antes disso, porém, realizou inúmeras atividades das quais sabemos. Certamente, foram essas diversas experiências que forraram sua memória e povoaram seu imaginário e assim permitiram que ele se tornasse o contador de histórias que era.
Ouvi várias dessas histórias, muitas charadas, algumas anedotas. Eram sempre narrativas envolventes, bem estruturadas, misteriosas, que nos conduziam com curiosidade até o clímax, para depois nos colocar com as mãos em um grande desfecho. Lembro apenas de fragmentos delas. O que ficou realmente gravado foi o encantamento que me causavam. Ouvia tudo com atenção, altas expectativas, e um certo medo pelo suspense e terror que algumas delas traziam. As histórias de João “Sobrá” (assim algumas pessoas o chamavam) marcaram muita gente. Não tenho dúvida de que, além do sobrenome, herdei dele também esse desejo de contar histórias. Não sei se terei o mesmo êxito que ele, mas espero não decepcioná-lo.
Quando retornei para casa, a saudade cresceu. Porém, algumas semanas depois, meu avô veio para Cubatão em busca de um tratamento melhor. Estava mais fraco, mais magro. Já não tinha mais a cadeira de balanço para o acolher. O único conforto de sua casa que pode reproduzir por aqui foi a rede em que se balançava. Passava boa parte do dia nela. Deitado, sentia menos dores. Assim, os dias foram caminhando. Tive a oportunidade de conhecer mais histórias, e de ouvir outras vezes o vocativo Tiágua que tanto me marcou. Isso durou pouco mais de um mês. Os últimos dias de meu avô chegaram e foram vividos longe de sua terra, de sua ferrovia, sem seus velhos vagões e sem precisar desviar rebanhos. Mas, as histórias ficaram. E ficou em mim, principalmente, a influência do primeiro narrador que conheci. Além disso, o desejo que ele expressava a cada manhã, antes de dizer Tiágua, quando eu lhe pedia a “bença”, tem sido uma busca constante em minha jornada: “Deus te faça feliz”. Tenho tentado, seu João Sobrá. E acho que tenho conseguido.
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