Ipê florido
Seu ipê floriu. Foi a primeira florada e ela me fez lembrar você e seus maiores sonhos. Dias atrás buscava sua voz em minha memória, nas modas que cantávamos juntos. Sinto falta de sua voz rouca, de seu sorriso escrachado, até do cheiro do Kaiak que exalava de suas roupas. Nesses quatro anos sem você muita coisa aconteceu. Compartilharia todas com você, meu melhor amigo. A saudade é tão grande que quase me sufoca. Queria te dar um último abraço. Pela última vez passar as mãos em sua barriga e ouvir que tudo irá ficar bem.
Não é fácil escrever sobre você, que apesar dos defeitos, foi um referencial para mim. Quando canto, lembro de meu maior incentivador, você, e de seu sonho de me ver cantar aquelas modas que sempre me emocionavam, aquelas narrativas que me contavam um pouco de sua história, de sua origem. Ainda não consigo ouvi-las, pois elas denunciam a falta da voz que me guiava. Eu era pequena quando o senhor se imbuiu do sonho de fazer de nós uma dupla sertaneja. Queria realizar em nós seu sonho de juventude, você e seu irmão já haviam sido uma dupla, no entanto minha irmã não nutria esse mesmo amor pela música que existia em nós.
Então, cantávamos nós, uma filha e um pai. Quantas vezes você chamava os parentes, os vizinhos para nos ver cantar. No início sentia-me constrangida, mas depois sentia que pouco a pouco algo se transformava dentro de mim. Encantava-me ouvi-lo cantar com minha mãe, meus tios e tentava acompanhá-lo, seguir suas orientações. Uma das músicas preferidas que cantávamos era “O ipê e o prisioneiro” de Liu e Léu. Ficava emocionada ao ouvir os acordes e sua voz dando vida àquela melodia. Mas, eu não entendia, não sabia do que aquela música falava. Até que aprendi que a vida imita a arte, ou o contrário.
Lembro daquele dia em que te encontrei, muitos anos depois, quando você me esperava na saída do trabalho. E ao ouvir tocar no rádio a música do Ipê, conversamos sobre o que a letra representava, era a história de um feminicídio. Um homem ciumento e violento que havia acabado com a vida de sua amada por vê-la com outro homem, que na verdade era seu irmão e, da cadeia, de uma cela, ele só avistava o ipê florido e lembrava de seu amor. Recordo-me de sua surpresa e de como a vida nos coloca em situações em que passamos a enxergar as coisas de maneiras diferentes. De como em nossa família, uma pessoa amada por nós poderia ter o mesmo destino e, de como nossa união e a força daquela mulher a tinha tirado daquele relacionamento que podia levar também a um triste fim.
Recordo-me também do dia de sua passagem, fiquei o dia todo com você. Não foi fácil ouvir da médica que estava tão próxima, você sabe o quanto tive que ser forte ao perceber que meu primeiro amor estava partindo. Fiz de tudo para deixá-lo confortável, foram beijos, abraços, palavras cheias de amor e carinho. Cantei para você uma das modas que cantávamos juntos. Limpei seu rosto, acariciei seus cabelos, disse o quanto você era lindo e amado por todos e, que ficaríamos bem.
Depois de sua partida, as coisas foram difíceis, mas, se encaminharam, inclusive com essa pessoa que nós amamos e que sofreu tanto em um relacionamento abusivo. E, em sua homenagem e para lembrar os momentos que passamos juntos cantando, conversando, rindo, eu plantei um ipê amarelo em frente à sua casa e ele já floriu. Ao ver sua floração viva e plena, sinto sua presença, seu sorriso, busco sua voz, seu perfume, seu abraço, você pai.