Acho que o café esfriou
Acho que o café o esfriou. Foi a última frase que ela disse antes de levantar da mesa e ir para o quarto arrumar suas coisas. E eu ali, estático, continuei bebericando aquele café morno, fraco e sem mais gosto algum. Houve um tempo em que o nosso café era forte, o aroma penetrava nas narinas de quem passasse e era nítido que aquele grão fora moído na hora. Era o café dos cafés e nós bebíamos várias e várias vezes por dia. Tudo funcionava como uma engrenagem perfeita, o pó era de primeira, orgânico, conservado com o maior cuidado do mundo. O coador não era de papel, era de pano, que absorvia sempre resquícios do café anterior e deixava o próximo sempre com um gosto mais intenso. E o bule, nosso bule era lindo, de prata polida e cheio de detalhes minúsculos por toda sua superfície, não usávamos garrafa térmica, raramente deixávamos sobrar se quer um golinho pra contar história. Sempre que enjoávamos do cafezinho tradicional pós almoço, inventávamos, era café com leite, cappuccino, macchiato, mocha, espresso italiano e de vez em quando, um pingado. Pingos e mais pingos de café nas suas mais variadas formas e contrastes foram ingeridos, tínhamos overdoses de cafeína, éramos imbatíveis, ficamos viciados. A dependência aos poucos foi virando obrigação, o organismo já estranhava se ao menos uma dose não fosse consumida. A obrigação virou gastrite, a gastrite virou stress e o stress chegou ao fim. Trocamos o café, que já não era mais novidade para ambos, por algumas xícaras de chá, copos e mais copos de chocolate quente e até umas taças de vinho. Comprar o pó para os nossos cafés diários já não entrava em nossas listas de compras, o coador estava esquecido no fundo da gaveta e o bule foi substituído por uma cafeteira elétrica. E já não importava quantas colheres de açúcar fossem colocadas, o gosto era sempre amargo, imbebível. Admiro sua coragem, em levantar da mesa pra nunca mais precisar beber aquele café e eu ali, estático, dei o último gole e fui colher novos grãos.