Cada um por si e ninguém por todos.

O sujeito entrou no circular no final da tarde. Mais um sujeito como outro qualquer, daqueles que a gente sempre vê em ônibus. Um estudante, talvez. Enfim, era um moço metido numa blusa preta e calça jeans clara, com cara de gente comum de cidade. Cabelo castanho, nem alto nem baixo...

No ônibus só havia Cristiane, com cara de quadro, algumas poucas pessoas, motorista e cobrador.

Alguns lugares vagos.

O rapaz senta bem perto de Cristiane.

"Ai, meu sagrado coração de Jesus. Lá vem um engraçadinho. Com tanto lugar vago... Paciência nessa hora."

Henrique: Boa tarde!

Cristiane: Boa...

...

Henrique: Senhorita...

Cristiane: Sim?

Henrique: Está uma bela tarde.

Cristiane: Certamente. (Sem graça)

Henrique: Me chamo Henrique. Como é seu nome?

Cristiane: Cristiane.

Henrique: Pra onde você vai, Cristiane?

Cristiane: Quanta intromissão! É da sua conta? (Já perdendo a paciência)

Henrique: Não. Aliás, indiretamente sim. Desculpa.

Cristiane: Como indiretamente?

Henrique: Estamos em cadeia, todos os que vivem em sociedade. Uma hora é da conta de cada um, indiretamente, o que o outro faz.

Cristiane: Ô maluco você, hein... Bem, então eu estou indo para minha casa!

Henrique: Aonde exatamente você mora?

Cristiane: Agora vi coisa! Por que está me fazendo tantas perguntas?

Henrique: Mas até agora só fiz duas... Só estou tentando conversar com você, e não se responde uma pergunta com outra pergunta. Gosto de conversar.

Cristiane: Moro ao lado do santuário, na rua Eliseu. Mas, importa onde eu moro?

Henrique: Não... Importa-se comigo? Se eu estiver incomodando posso procurar outro lugar pra sentar.

Cristiane: Pode ficar aí, vai ser ignorado do mesmo jeito.

...

Henrique: Você ignora as pessoas que falam com você... Assim, só por que são desconhecidos?

Cristiane: E os que fazem perguntas chatas também.

Henrique: E se eu fosse um artista famoso? (abrindo um largo sorriso)

Cristiane: Mas você não é. E isso não mudaria, seria ignorado do mesmo jeito.

Henrique: A garota que faz o artista parecer normal...

...

Cristiane: Como assim? Não gostei disso. Foi irônico? Não gosto de ironias.

Henrique: Claro, detesta mesmo.

Cristiane: Agora está sendo sarcástico!?

Henrique: Mas você não disse que ia me ignorar?

Cristiane: É mesmo! Obrigada por lembrar. Está ignorado!

Henrique: Obrigada? Hum, Estamos fazendo progresso aqui... Já me agradeceu.

Cristiane: Progresso? Que progresso? Sou alguma experiência? Qual é o seu objetivo?

Henrique: Qual é o seu objetivo?

Cristiane: Mas eu perguntei primeiro. E você disse que não se responde uma pergunta com outra pergunta.

Henrique: Hum! Você aprendeu mesmo, hein...

(Momento de risos.)

Cristiane: Meu objetivo é chegar em casa, tomar banho, dormir para amanhã recomeçar a rotina.

Henrique: Sua vida é rotineira?

Cristiane: E a sua não é?

Henrique: Acho que não.

Cristiane: Ah. Não venha me dizer que todos os dias você acorda com algo aleatório para fazer, e, de repente, resolveu, aleatoriamente, entrar dentro deste ônibus e conversar comigo!

Henrique: Nossa! Você anda me vigiando? (Em tom de brincadeira)

Cristiane: Você faz o que da vida? Estuda? Parece novinho.

Henrique: Tô concluindo a faculdade de psicologia. E você?

Cristiane: Funcionária pública.

Henrique: Deve ser cheia de obrigações.

Cristiane: Que vida é essa sua? Você não tem obrigações também, casa pra ir, faculdade?

Henrique: Todo mundo tem obrigação...

Cristiane: E como sua vida não é rotina, se você tem que seguir horários de suas obrigações todo dia?

Henrique: Não é obrigação virar rotina.

Cristiane: Como não?

Henrique: Olhe ao seu redor. O que você vê?

Cristiane: Várias pessoas sentadas nos seus lugares.

Henrique: Qual será o objetivo delas?

Cristiane: Suponho que seja o mesmo que o meu. Vão pra casa e amanhã recomeçam a rotina.

Henrique: Exatamente. Você está vendo as pessoas.

Cristiane: Não foi isso que eu disse?

Henrique: Não vê nada mais além de pessoas?

Cristiane: É pra ver? É algum papo de meditação ou espiritos?

Henrique: Olhe mais. Como elas estão?

Cristiane: Estão paradas, caladas, olhando para algum lugar.

...

Henrique: O que você acha que elas estão pensando?

Cristiane: O que é que você acha? Não faço idéia.

Henrique: Penso que elas estão ansiosas para voltarem para casa, e lá, suprirem suas necessidades genéricas. Elas contêm suas próprias necessidades e capacidades de supri-las. Isso não é nenhuma novidade. Mas, acho estranho por que não falam com as outras.

Cristiane: Não é estranho. Estranho é você que, do nada, vem falar comigo.

Henrique: Você acha que eu sou exceção em meio à regra geral. Veja como estas pessoas são incapazes de compartilharem qualquer palavra com o próximo. Sequer dizem bom dia ou boa noite. Sentam-se ao lado das outras com certa automação como se fossem máquinas. Até vejo certa repugnância se encostarem no outro.

Cristiane: Isso é verdade, mas ninguém tem nada a ver com a vida do outro, e pra quê falar bom dia ou boa noite, se vão desencontrar em breve e nunca mais se verão?

Henrique: Cris, a maioria usa o mesmo caminho para casa todos os dias. Eu vejo cada pessoa como mil possibilidades. Um novo horizonte, uma nova experiência, novas técnicas. Cada ser humano é um universo bem interessante. Deixar de compartilhar até um tequinho de simpatia me parece até um tanto egoísta. Como se evitam mutuamente, até parece que querem enriquecer-se com experiências próprias para alcançarem algum tipo de gratificação afetiva egoísta. Veja a miserabilidade existencial em que se encontram estas pessoas ao nosso redor. Vejo em cada um a expressão do egoísmo e do desconforto. O isolamento vergonhoso em que se encontram e não conseguem converter apenas em um simples diálogo. Embora ainda tenha sobre o ambiente uma vastíssima teia de possibilidades, preferem anularem-se a si mesmos, acabar logo com isso e chegar em casa.

Cristiane: Chegar em casa todo mundo quer... Mas faz sentido. É isso que vejo todos os dias. Interessante. Tem a ver com psicologia?

Henrique: Por aí, não só com o ser humano em unidade, mas com o meio...

Cristiane: Entendo. Interessante, eu vejo exatamente isso todo dia.

Henrique: Eu também, mas com outros olhos.

Cristiane: Mas é normal às vezes não falarmos com ninguém, não tem nada de mais nisso.

Henrique: Não tem mesmo, já nos acostumamos. Alguns passam o dia inteiro sem falar com desconhecidos e podem achar que foi melhor assim. Talvez. Acho bom compartilhar qualquer coisa, mesmo uma palavra, com qualquer um. Mesmo que seja pra desabafar. Ainda somos humanos.

Cristiane: Não sei como me enquadro isso, mas você disse que eu te achava uma exeção em meio à regra geral, e acho que deveria ser ao menos mais comum as pessoas se dialogarem...

Henrique: Pois é. Eu nunca teria conhecido uma Cristiane, funcionária pública, que vai pra casa todos os dias no circular, não conversa com desconhecidos e gosta de tomar sorvete de baunilha e passear com o cachorro nos domingos

Cristiane: Sorvete? Passear com o cachorro? Tá doido?

Henrique: Tudo bem, inventei!

(Momento de risos)

Henrique: Opa, não é depois dessa parada que você mora?

Cristiane: É sim... Bem, então adeus. Obrigada por ter sido, bem... Chato. Eu gostei de conhecer você.

Henrique: Eu também gostei de conhecer você. Mas espera que não é adeus. Vai ver a gente se esbarra de novo.

Cristiane: Tomara então. Espero... Até!

Henrique: Até outro dia.

"Menino diferente... Onde será foi que ensinaram tanta coisa assim, pra ter uma educação diferente desse jeito?" Pensava ela contendo um sorriso de satisfação, enquanto caminhava sobre os saltos pretos na calçada, já tirando a chave da bolsa pra abrir a porta.