Oitenta anos

Oitenta anos

Oitenta anos não são oitenta dias. São mais de três quartos de século. Contudo, parece ter se ido como esta noite, que não deveria ter vindo nunca, pois o dia que aparece no horizonte traz tantas mudanças para a vida e, sendo assim, nunca queria tê-lo vivido. Não dormiu nada, nem ao menos fechou as pálpebras. A vida inteira passada diante dos olhos como numa tela; lembrada em pedaços e chorada; sentiu amor de novo nos passados momentos de ternura e o ódio do destino que trouxe este presente o fez apegar-se mais à revivescência dos momentos pingados como em cenas; tantos queridos não mais presentes, mas não ausentes, vivos na memória; as palavras ecoando, os gestos vivos nos olhos, dentro das pupilas, os olhares iluminando a pele; agora tudo isso quase um nada, pequenas recordações da mente teimando em conservá-los juntos para garantir o lampejo da vida já não sabendo se quer continuá-la. Está só, quando tudo se evaporou como fumaça e as coisas escaparam pelas mãos como uma gelatina ou um gelo que derreteu e destruiu até mesmo a sensibilidade das mãos. O corpo doía como as recordações; a quem tantos amparou, restava o desamparo, a solitude. Por tantas passou! Pensara nunca mais sentir nostalgias tão fortes; não ouvia voz alguma nessa morada se não falasse sozinho, resmungasse ou inventasse diálogos com pessoas agora amortecidas; o silêncio maltratava muito porque era a tradução mais contundente da indiferença, a voz do desprezo e o grito de enfado do mundo. Pois bem, não era só ele quem estava muito cansado, o mundo se cansou muito mais dele. Sua casa antes tão povoada e alegre, tantas vozes, tanto barulho, quanta alegria e prazer! Por que ninguém aparecia por lá agora? Tinha certeza que não havia se transformado em um velho desagradável e resmungão, continuou aquela pessoa alegre de antes, só lamentava com alguma frequência os tempos idos, a perda da mulher, e isto jamais poderia deixar de fazer, como não falar nestas coisas? Falar delas era, pelo menos, um desabafo. Bem, mas não tinha mais nada a oferecer, a casa pobre e sem guloseimas e sem nem mesmo um bom almoço ou jantar como era comum antes. As pessoas não querem ouvir choro de velho. O mundo é uma grande ilusão. Nada permanece, nem a vida; um dia até mesmo a memória de quem foi será como o vento de nada. Parece que para uns a vida é mais pródiga, com ele não se deu isto. Tantos na velhice, cercados de cuidados e carinho, continuam se sentindo gente e percebem que muita coisa pela qual lutou floresceu. A sensação era de só se ter algum mérito quando se podia fazer algo por alguém e tudo que fez exalou como um perfume que logo cede ao cheiro de suor do corpo.

É!... o tempo! Ah! O tempo! Inexorável como só ele. Sua organização e regularidade é absolutamente impenetrável. Suas voltas e repetições são enganosas. Isto de amanhecer, entardecer, chegar o outono, depois o inverno e logo após a primavera, prenunciando o verão, é somente um artifício para esconder que, uma vez passado um dia ou um ano, o que virá depois não são repetições, é um passar arrastando a vida, levando e trazendo as coisas como em nenhuma outra situação ou momento. Portanto, todo instante é único e os dias e as estações são somente as formas nas quais o tempo imprime o conteúdo. A velhice é um florescer do tempo, porque é um encontro consigo mesmo. O homem passa a vida toda fugindo de si, procurando nas coisas a satisfação de suas carências e quando chega a idade do auge é obrigado a encontrar-se com o eu de quem tanto fugiu. E esse eu percebe-se esvaziando-se, voltando para o seu nada de onde veio quando criança, não se prepara para o esvaziamento, só se prepara para enriquecer, ter sucesso e iludir-se.

Rodison Roberto Santos

São Paulo, 2000

Rodison Roberto Santos
Enviado por Rodison Roberto Santos em 23/08/2024
Código do texto: T8135122
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