Metrô superlotado

A superlotação do metrô é um fenômeno comum nos grandes centros brasileiros. Mas o sistema metroviário de Salvador possui uma particularidade que deveria colocá-lo nos anais da literatura universal.

Do lado de fora do vagão do trem lotado, os costumes da civilização acabam inibindo ou amenizando uma característica que pode florescer no espírito humano e que se mostrou útil às artes e ao jornalismo: a ironia. O filósofo Friedrich Nietzsche acreditava que a moral domesticava o ser humano. Vou além e digo que a moral também impõe controle social sobre o espírito irônico. O sarcasmo pode parecer grosseria, segundo os nossos valores.

Contudo, no metrô entupido de gente, a situação muda significativamente. Ali dentro parece um mundo à parte, longe das amarras morais. É como se o cotidiano no vagão superlotado emergisse das penas do grande Machado de Assis. Ou é como se os passageiros incorporassem o espírito do autor carioca. Vi isso de perto.

A criatividade irônica se solta à medida que o alto-falante da empresa responsável por esse transporte vai comunicando mensagens repetitivas e monótonas.

Por exemplo:

- O metrô de Salvador está se esforçando para que você tenha o maior conforto. - diz o alto-falante.

- Estamos super confortáveis, não é, pessoal? - pergunta um passageiro.

Todo mundo, inclusive eu, responde:

- Simmmmm!

Depois caímos na risada.

Outro exemplo:

- Todos os dias, o metrô toma as medidas necessárias para garantir espaço e comodidade.

Uma mulher, que estava espremida entre várias pessoas, disse:

- Tem razão, metrô! Eu mesma estou desfrutando desse maravilhoso espaço!

Algumas pessoas gargalham.

Mais uma vez o alto-falante se pronuncia:

- Uma dica para você, passageiro: escolha sempre os vagões das extremidades. Será mais fácil para você encontrar um lugar para se sentar.

Eu e muita gente estávamos em um desses vagões.

Uma outra mulher disse:

- Ideia brilhante, não? Ela (a voz do alto-falante era feminina) diz isso para qualquer pessoa ouvir. O fato de eu mal conseguir me mover, e de sequer conseguir me abaixar para pegar meu cartão que caiu, demonstra que todo mundo seguiu essa dica. Não é verdade, pessoal?

Todos, incluindo eu, respondem:

- Com certezaaaaaa!

Pode-se dizer que o aperto (literal e figurado) faz o ironista. Porém, ninguém quer ficar tanto tempo dentro de um transporte que mais parece uma lata de sardinha ambulante. Portanto, a natureza do homem sarcástico de metrô é efêmera. Um autor dentro do vagão, e que queira trabalhar com a ironia pós-moderna em sua obra, encontrará muito material para escrever. Todavia, quando o metrô chegar na estação final, e as pessoas saírem, o espírito de chalaça será dominado pelas correntes da moral.

Ou melhor dizendo, a ironia será escondida pela civilização, assim como a coriza é ocultada pelo lenço. Peguei essa metáfora de Machado de Assis, que em uma crônica do dia 14 de junho de 1885 escreveu: “a civilização, que não inventou o defluxo, inventou o lenço, que dissimula o defluxo, guardando no bolso os seus defeitos”. Ele não referia à ironia, mas a linguagem figurada pode ser aplicada aqui. A rotina dentro de um vagão lotado de trem é um dos poucos lugares onde o lenço não é utilizado.

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 22/08/2024
Reeditado em 22/08/2024
Código do texto: T8134812
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