O que podemos refletir sobre a pandemia do coronavírus
Ao buscar a si mesmo encontramos os outros. Esses outros não são nem o inferno, como dizia Sartre, nem o céu. Essa busca de si próprio e o inevitável encontro com os outros é um movimento reflexivo para cada um se entender como indivíduo, o que pressupõe a formação da consciência. Assim, é necessário que os outros se interponham na vida de quem forma a consciência, seja no cuidado seja chamando a atenção por estímulos visuais, auditivos e táteis.
Dizendo um pouco diferente, cada um para ser a si mesmo precisa dos outros para fundamentar sua própria consciência. Isso no sentido de que cada pessoa só se torna ela mesma pelo contato com outras pessoas por meio da interação social e, nesse sentido, conforme a observação e a imitação.
Se saltarmos muitos encadeamentos de raciocínios chegamos a considerar a sociedade como uma instância importante para a formação daquilo que é mais caro para cada um, que é a nossa própria identidade. Em meio a essa identidade herdamos e aprendemos a ter o cuidado de si que, como diz Foucault na História da sexualidade, advém por meio de uma cultura intrincada que envolve habitar conjuntamente na cidade - no caso que ele analisava, a pólis grega -, onde cuidar de si se tornou um dos deveres dos habitantes para poder cuidar bem da cidade.
Não foi diferente entre os hebreus no deserto que Moisés, com todo o conhecimento de preservação de saúde do povo, adquirido na corte do Egito por meio dos sábios, sacerdotes e médicos, impôs aos errantes no deserto regras sanitárias. Essas regras versavam sobre a alimentação, a excreção, os cuidados relativos à pele, às manifestações naturais de fertilidade nas mulheres e nos homens, aos intercursos sexuais e a tudo que poderia ser vetor de transmissão de doenças contagiosas. Com a individualidade circunscrita ao fato de pertencer a um povo, o recurso a que todas essas prescrições fossem tomadas como mandamentos divinos recobria com uma áurea sagrada as instruções higiênicas.
Saltando muitos séculos e até milênios, chegamos à pandemia do coronavírus que assolou o mundo a partir do início de 2020 se estendendo até o ano de 2021 adentro. É a pandemia do final da segunda década do milênio e do começo da terceira década. Na emergência dessa sindemia - passaremos a chamar assim o atual estado sanitário do mundo -, problemas que estavam latentes, ou tinham uma percepção atenuada, tornaram-se espelhados com lentes aumentadas. Esses problemas estão na ordem do que se considera como manifestações individuais de depressão, ansiedade, pânico, as doenças classificadas como psíquicas e até velhos problemas do globo terrestre que é a enorme desigualdade econômica entre os países do mundo, acarretando injustiças de escalas planetárias e estarrecedores.
Nosso planeta se vê nu, descortinado e sofrendo a imprudência dos animais racionais, a nossa espécie de mamíferos. Se pudermos acreditar, como alguns renascentistas e humanistas do século XV e XVI da Europa central - como Paracelso, por exemplo - que a própria terra é um ser vivo e que, além de sentir tudo o que lhe é próprio, defende-se, reequilibra-se, reage e se enfurece , dessa maneira, podemos dizer que a terra mais uma vez adoeceu. Contudo, se da ação do homem padece essa esfera azul, seu tormento já se dá há, pelo menos, algumas décadas, antes mesmo da chegada do novo milênio.
Penso que a sindemia diz para nós, em primeira mão, que somos da terra, dos elementos químicos e das transformações físicas do planeta e se formos buscar a sabedoria indígena, somos a terra, que é una conosco, mas mesmo assim podemos ser sua parte do mal ou podemos ser sua parte do bem, ou ambas as partes conjuntamente. Parece que nos enganamos pensando que dominamos nosso planeta e que ele é tão rico e tão ilimitado que podemos revolvê-lo como se revolve o chão do quintal. O chão do quintal faz parte também desse todo, pequeníssimos seres nele estão integrados e também grandes biomas que funcionam interativamente.
Nesse diapasão, ao se destruir grandes biomas, pequenos seres que neles vivem procuram sobreviver em outros ambientes e vão a todo tempo se adaptando a tudo que os podem fortalecer. Foi assim que um pequeno ser descobriu que um ser médio era populoso e habitava quase toda o planeta e que se transportando por ele seria uma forma de sua espécie se reproduzir e se fortalecer. Ceifar uma grande quantidade de vidas médias não seria problema porque uma quantidade muito maior o perpetuaria. E assim, se alimentando, se reproduzindo e se fazendo presente em toda parte, esse pequeno ser nos fez ver que somos iguais em muitas coisas. Já a desigualdade estava instalada até não se reconhecer humanidade no outro. A igualdade não fora destruída, continuamos todos terra e a ela todos nos uniremos.
Com muita razão, Espinosa diz que a natureza naturante e a natureza naturada tornam-se numa só. A natureza naturante é aquela que age autonomamente, que se transforma, que tem inteligência intrínseca para se defender e se modificar no ambiente da melhor forma possível e a natureza naturada sofre as ações de outros agentes e é passível de ser modificada por fatores externos a si mesma. Os biólogos contemporâneos falam em interação, essa relação é complexa no sentido de que tanto os seres vivos se modificam pelas ações de outros seres e de fatores externos quanto modificam o ambiente e concomitantemente se modificam a si mesmos. Dessa forma, podemos dizer que qualquer transformação se torna tanto uma mudança do ser quanto uma alteração de onde o ser vive.
A natureza nos produziu e, como alcançamos razão por meio do fato de termos os pensamentos, que é um trabalho do ponto de vista físico das operações do cérebro, dessa forma, todo o conjunto de fenômenos que são proporcionados primeiramente pela capacidade de pensar e também pelas próprias atividades internas do pensamento, esse conjunto é entendido de forma mais abstrata como a mente. Dando saltos nessa abstração, podemos dizer que o espírito é algo mais complexo que a mente pois as reflexões mais elevadas, com a junção de vários pensamentos simples e complexos, podem estar contidas nos trabalhos do espírito.
A dificuldade de nós humanos nos considerarmos natureza e seres de dentro da natureza se intensificou quando adentramos todos, de maneira planetária, no capitalismo, a partir do início da época que chamamos Idade Moderna pelos finais do século XV e início do século XVI da era cristã. Se alguns grupos étnicos estiveram apartados a ponto de se preservarem de sofrer a influência direta da forma de vida gerada pelo capital, esses grupos, ou foram dizimados ou sofreram de alguma forma indireta, o impacto do capitalismo no nosso globo terrestre.
Sobre a força e a extensão do capitalismo na subjetividade, na intersubjetividade e na objetividade de todos já escreveu Karl Marx nos livros Ideologia alemã, O Capital etc. O lema conhecer para dominar a natureza, expresso por Francis Bacon, foi de fato estendido de maneira exponencial a partir da Idade Moderna. Isso significa que a cisão na consciência humana em relação a seu distanciamento da natureza se deu de maneira tão ampla que também foi ampliada a concepção de natureza humana. Ou seja, segundo a ampliação dessa concepção, a essência do que é o homem seria diferente da natureza em geral, pois aquele além de pensar, também conhece e supostamente controlaria e dominaria amplamente as coisas naturais.
Assim, um pouco diferenciado da natureza e sem se importar com muitos problemas que podemos causar a ela, nós, as mulheres e os homens ditos ‘civilizados’, durante séculos, a partir do século XIV até nossos dias, tivemos em muitos momentos uma atividade predatória e sem muita preocupação com os impactos que ocasionam ao ambiente. Os processos de equilíbrios internos foram constantemente abalados e em muitas situações os próprios homens sofremos com o abalo desse equilíbrio.
Indígenas insistem em viver de uma maneira mais harmônica com a natureza e não se destacando dela como alguém que tem uma relação de superioridade. Na sua maneira de vida nos mostram que é muito mais coerente viver em integração com o universo e com aquilo que ele prescreve. Dessa forma, eles nos dizem que somos, em muitos aspectos, como as árvores, o ar, as plantas, os insetos, os répteis, os mamíferos e que tais. E os mitos e lendas, se não contam as histórias originárias de uma forma mais cientificizada, nos revelam que estamos integrados ao mundo e que viemos dele e sob a intensa influência de seus elementos. Estão aí Ailton Krenak com seus livros Ideias para adiar o fim do mundo, O Amanhã não está à venda, Caminhos para a cultura do bem viver e outros autores como Daniel Munduruku, entre outros escritores indígenas brasileiros contemporâneos.
O meio e o ambiente já nos puniriam na forma de doenças que atingem de maneira planetária e no mesmo espaço de tempo a pelo menos grande parte dos habitantes da nossa terra. Contribuímos para isso e provocamos as causas dessas pandemias que na verdade são sindemias. Estamos há muito tempo errando o alvo, atirando flechas venenosas em direções obscuras sem saber que o que atingimos pode perfurar camadas desconhecidas e podem desencadear sofrimento. As armas que humanos criaram e fabricam em larga escala não só atingem corpos indefesos, negros e mais pobres mais abrangentemente e de todos as outras etnias da terra, produzimos armas que matam de várias maneiras e a morte se desloca de forma avassaladora para uma fronteira difusa entre o que poderia ser natural e o que é produzido por nós próprios, bípedes que raciocinam.
Não precisaríamos voltar a andar de quatro patas para procedermos a uma volta para prestar mais atenção e ter mais respeito à natureza. Andar de quatro patas foi uma acusação jocosa feita pelo filósofo iluminista francês Voltaire contra a teoria de outro filósofo iluminista suíço, Rousseau. Segundo Rousseau, o homem vivia feliz no estado de natureza, quando estava totalmente integrado a uma espécie de essência natural, de maneira que as próprias ações dos homens eram ações eminentemente protetoras da natureza. Quando os seres humanos começaram a viver em comunidades, antes de entrar no estado de sociedade - no período intermediário entre a vida primeva e o período instituinte de um estado - , esse período intermediário foi chamado pelo filósofo suíço de Idade do Ouro da humanidade. Essa teoria foi baseada nos relatos dos indígenas brasileiros, escritos pelos primeiros exploradores europeus no Brasil desde o século XVI até o XVIII. O filósofo chamou os indígenas descritos de bons selvagens, por considerar que os homens e as mulheres que não estavam organizados em uma sociedade política depois da instituição de um estado, esses homens e mulheres são originalmente bons e continuam bondosos em sua essência ao longo dos tempos.
Mesmo talvez sendo mais custoso para nós humanos atualmente prestar atenção à natureza, as vozes indígenas que nos chamam para escutar o âmago das coisas que tem vida em si mesmas ressoam fortemente e já nos dizem que o céu não é estanque lá em cima como pensamos, ele pode cair sobre nós e é por isso que há povos destinados a sustentá-lo, que a terra sem males não é um horizonte perdido e inalcançável, ela pode estar mais perto do que pensamos porque pode estar dentro de cada um de nós e basta que estendamos esse caminho para além dos nossos corpos e espíritos e essas dimensões encontrem as dimensões dos animais, das plantas e das coisas que os vivificam, como o ar, o sol e mais o amor, o respeito às vidas e à vida e a consideração de que nossas vidas não são somente esse momento fugaz do tempo da consciência individual de cada um, mas já fomos elementos universais, planetários, nos transformamos em sementes separadas que se uniram e no mínimo, voltaremos a ser húmus, terra, como tudo que aqui existe, para dar vida a outros seres, desde plantas, insetos e toda forma de animais.
A oportunidade de construção está dada e mesmo os que, infelizmente se foram por conta dessa sindemia, solicitam a nós que ficamos que os ressuscitem, eles precisam continuar vivendo nas nossas saudades, lutas, buscas e procura de caminhos para uma terra ou um planeta saudável ou para um universo melhor, porque ao que me consta até agora, ainda somos a razão no universo ou simplesmente, os únicos seres de razão sobre a terra. Talvez isto seja muito dispendioso do ponto de vista dos esforços, porém é nossa tarefa e o peso sobre os ombros podem ser aliviados quando virmos os primeiros frutos de nossa ação no mínimo como uma nesga de amor ou somente uma gotícula de doce natural no néctar de uma pequenina flor. Isso já é bastante para adoçar o bico de um beija-flor que brilha com suas cores ao redor. Eis o pedido dos que se foram, expressos nessa canção composta por Caetano Veloso e Ney Lopes, inspirada no poema O Amor de Vladimir Maiakovski, poeta russo que viveu entre 19 de julho de 1893 e 14 de abril de 1930:
Talvez quem sabe um dia
Por uma alameda do zoológico
Ela também chegará
Ela que também amava os animais
Entrará sorridente assim como está
Na foto sobre a mesa
Ela é tão bonita
Ela é tão bonita que na certa
Eles a ressuscitarão
O século trinta vencerá
O coração destroçado já
Pelas mesquinharias
Agora vamos alcançar
Tudo o que não podemos amar na vida
Com o estrelar das noites inumeráveis
Ressuscita-me
Ainda que mais não seja
Por que sou poeta
E ansiava o futuro
Ressuscita-me
Lutando contra as misérias
Do cotidiano
Ressuscita-me por isso
Ressuscita-me
Quero acabar de viver o que me cabe
Minha vida
Para que não mais existam
Amores servis
Ressuscita-me
Para que ninguém mais tenha
De sacrificar-se
Por uma casa, um buraco
Ressuscita-me
Para que a partir de hoje
A partir de hoje
A família se transforme
E o pai seja pelo menos o universo
E a mãe seja no mínimo a Terra
A Terra
A Terra.
Rodison Roberto Santos
São Paulo, 2022.