Noite de boas-vindas
Foi assim...
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Naquele 22 de fevereiro de 1960, o Morro do Urubu guardava um misto de alegria e tensão. Meu pai, homem simples e de poucas palavras, carregava no peito a felicidade de se tornar pai pela primeira vez. Minha irmã nascera saudável, e minha mãe repousava após o árduo trabalho de trazer uma nova vida ao mundo. Já era noite avançada quando ele deixou a maternidade, o coração aquecido pela notícia da chegada de sua primogênita.
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O barraco onde moravam era modesto, quase uma pintura na paisagem do morro. A escuridão da madrugada, sempre acompanhada pelo silêncio quebrado por cachorros e grilos, servia de cenário para o retorno solitário do meu pai. Ele tinha planos de celebrar. Havia passado na venda e comprado duas garrafas da sua cachaça preferida, planejando um brinde à vida que acabava de nascer, mesmo que em solidão.
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Ao se aproximar de casa, porém, algo não parecia certo. Dois homens desconhecidos estavam sentados à porta, figuras que não pertenciam àquele pedaço de chão. A cautela guiou seus passos, mas o sangue frio e a astúcia tomaram as rédeas da situação. Ele os cumprimentou com uma serenidade forjada e, percebendo a má intenção nos olhos dos estranhos, decidiu virar o jogo. Com um sorriso disfarçado e uma proposta de paz, ofereceu-lhes um gole da cachaça.
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Um gole tornou-se dois, depois três. A garrafa, antes destinada à celebração em honra à sua filha, agora servia para acalmar o espírito dos homens que, na verdade, procuravam confusão. Mas meu pai, um mestre na arte de lidar com as adversidades, sabia que o álcool, além de anestesiar a alma, poderia também desarmar a maldade.
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A bebida foi esvaziando as garrafas e os corpos dos intrusos foram sucumbindo ao chão, como se o peso da noite e do álcool os tivesse vencido. Dormiram ali, sem consciência do tempo ou do lugar. Meu pai, vendo a oportunidade, arrastou os dois até um barranco próximo, longe da porta do lar que ele tanto queria proteger naquela noite especial.
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Finalmente, em paz, ele entrou no barraco. O gole que restava na garrafa serviu para brindar não só à vida de sua filha, mas também à sua engenhosidade. Com o copo na mão, deitou-se, o coração agora em silêncio, apenas com os pensamentos voltados para a esposa e a filha que, pela manhã, o aguardariam na maternidade.
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Quando o sol despontou, lançou um último olhar ao barranco. Não havia sinal dos estranhos, que provavelmente tinham desaparecido sem memória da noite anterior. E assim, naquele pequeno pedaço de chão do Morro do Urubu, meu pai brindou à vida, à esperteza e à proteção da sua nova família, iniciando uma jornada que seria marcada por coragem, amor e pequenas vitórias em meio às adversidades.
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MMXXIV