Eis o câncer do sistema

Não sei até que ponto algumas coisas que acontecem em nossa vida são frutos do acaso, simples coincidências, ou se existe algum significado maior por trás. Hoje, minha manhã de estágio transcorreu no ambulatório de oncologia, em contato com o sofrimento de pacientes já tratados ou em tratamento contra o câncer. Mais tarde, recebo a notícia que um de meus melhores amigos da época do colégio faleceu em decorrência de um linfoma, aos 25 anos, o que trouxe ainda mais peso às experiências vividas nesse dia e contadas a seguir.

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Às vezes tenho a impressão de que ao menos parte do belo sistema de saúde brasileiro (sim, o SUS é lindo) tem o desejo de atrair os olhares internacionais para cá e se mostrar exemplo para o mundo. Infelizmente, são diversas as situações em que o sistema funciona para inglês ver.

Dentre as doenças que mais exigem uma abordagem rápida e precisa, os variados tipos de câncer talvez são as que mais demandam agilidade médica. Por esse motivo, os pacientes tendem a ser (ou deveriam ser) rapidamente amparados pelo sistema de saúde, com o intuito de alcançar um rápido diagnóstico e tratar o mais precocemente possível. Bem, essa não é a realidade que tenho visto ultimamente.

Dos quinze pacientes atendidos no período da manhã, um terço não via segurança na continuidade de seus cuidados. Sentados de frente para o médico, tentavam encontrar juntos soluções para um problema que ambos enfrentavam: a péssima gestão hospitalar, mais interessada no bem-estar político do que na saúde de seus usuários. Para uma, faltava o resulta do exame que definiria seu diagnóstico e, consequentemente, os passos de seu tratamento, extraviado em alguma etapa da burocracia. Para outros, faltavam a disponibilidade de um centro cirúrgico ou os materiais utilizados naquela cirurgia específica.

Entre esses e aquela, outro caso me chamou a atenção e a ira fútil de um simples e ingênuo acadêmico, que não sabe da missa a metade, subiu à cabeça. Entraram na sala uma mulher de meia idade e seu marido, sendo a primeira consulta do dia. A paciente estava em acompanhamento devido a um câncer colorretal, que havia sido operado com a retirada da lesão, mas que ainda exigia quimioterapia para erradicar as células cancerígenas que microscopicamente tentavam se espalhar por seu corpo.

Chegaram frustrados no consultório e a primeira pauta abordada foi a recorrente falta do medicamento para seu tratamento. “Olha, não tem o que o doutor prescreveu, mas tem esse outro que é o principal para seu caso, está bem?”. Não, não era o principal, mas o hospital precisava aparentar preocupado e dedicado nos cuidados daquela mulher. Como eu disse, tratamento para inglês ver.

Boa parte do atendimento se baseou na indignação do preceptor e da paciente frente a essa situação. Que meios utilizar para se conseguir o necessário? A ouvidoria do hospital joga a favor da administração, não adiantando, portanto, prestar queixas ali. Pedir para que o preceptor solicite a compra do medicamento? Bem, já foi feito mais de uma vez e a desculpa constante é o alto preço da substância, o que fez com que a gestão descartasse o protocolo clínico adequado e o substituísse pelo uso de uma medicação mais barata e menos efetiva. Infelizmente, esse não era o apenas mais um dos tantos episódios de descaso.

Assim, chegaram à conclusão de que restava a defensoria pública e, talvez até de modo mais eficaz, as manchetes jornalísticas escancarando os absurdos do cuidado de pacientes com câncer. Então, além de lutar contra o câncer e suas consequências físicas e mentais, era necessário também enfrentar os gestores e seus interesses, o câncer desse sistema que deveria estar ali para ajudar.

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Quanto mais próximo do fim da faculdade, mais perto estou de ser jogado dentro de um sistema tão grande que não consigo ter dimensão da profundidade de suas mazelas nem do tamanho de suas qualidades. Contudo, cada vez mais vislumbro partes da realidade, algumas das quais me animam e outras que me assombram, mas que me estimulam, desde já, a tentar ser agente de mudança em um sistema falho, conscientizando os leigos, cobrando os responsáveis e agindo diferente.

Extrapola os limites das más práticas expor pacientes oncológicos ao descaso de um sistema que finge que cuida. Frente ao câncer, como foi com meu amigo, podemos perder a batalha mesmo com todos os recursos à disposição. Então eu te pergunto: que chance nos resta se formos à guerra sem armas nem armadura?

Vitor do Carmo Martins
Enviado por Vitor do Carmo Martins em 19/08/2024
Código do texto: T8132608
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