AINDA É TEMPO

Com tantos casos de crimes passionais, penso que a crueldade está sorrateiramente tomando conta do coração das pessoas. Sou da velha opinião de que quem ama não mata, mas o que era amor se tornou um sentimento mesquinho de posse, não sei se foi esse capitalismo selvagem ou a falta de valores mesmo, mas hoje estamos mais cruéis que nunca.

E como a crueldade está presente em todos os setores, e como os homens que se calam também acabam sendo cruéis pela omissão, e como nosso medo está arrancando a voz de nossa garganta e como o futuro não é nada promissor, acho mesmo que quando nos faltar a poesia já não poderemos fazer mais nada.

Nessa época em que o sangue escorre com frequência aqui e ali, em que o choro de uma mãe não tem mais o mesmo apelo emocional e a morte já perdeu o tom de tragédia, fico com o conselho de Brecht e peço também, com insistência, nunca digam “Isso é natural!”. Não percam os olhos de espanto, não se acomodem. Enquanto colecionamos amiguinhos virtuais a humanidade se desumaniza e o dia passa mais rápido.

Ainda é tempo de alguma sensibilidade, é tempo de ainda enxergar a crueldade passional dos amantes que matam. A crueldade engravatada dos governantes corruptos que espalham pior forma de crueldade: a miséria. A crueldade fanática dos falsos religiosos que enganam e sujam o nome de Deus. A crueldade travestida de igualdade, mas que só massacra, dos ditadores. A crueldade cega e burra das torcidas que veem os pensam diferente como inimigos. A crueldade dos que abandonam. A crueldade dos que não choram mais.

A crueldade machista dos que agridem mulheres. A crueldade fascista dos que discriminam, dos que se sentem superiores, seja pelo motivo que for. A crueldade imbecil dos motoristas que não respeitam a vida. A crueldade radical dos terroristas. A crueldade burocrata das repartições públicas. A crueldade profissional de quem não ama o que faz. A crueldade oculta dos que enganam, dos que se aproveitam da situação.

Ainda é tempo também para enxergar tanta crueldade, tempo para olharmos nos olhos. Tempo de juntarmos mais e acumularmos menos. Tempo de se arrepender e fazer diferente. Tempo de sentirmos nojo. Tempo para derrubarmos muros. Tempo de não querermos mais guerra. Tempo de contar nossos mortos e continuarmos a caminhada.

Mesmo não sabendo quanto tempo nos resta é preciso ter a cumplicidade de um cão e os olhos de lince para viver nesse mundo. Sigamos...