Chapeuzinho Vermelho no divã contemporâneo

 

Resumo: O conto representa uma parábola da maturidade sexual e, nesse manto vermelho a simbolizar o sangue do ciclo menstrual, enfrentando a floresta escura e sombria da feminilidade, ou mesmo, representando a puberdade. Enquanto a avó representa o fim do caminho, representando a mulher em idade avançada. Enfim, o Lobo Mau representa o perigo, mas não como animal e, sim, como pessoa predadora e sedutora. Na versão original, a capa de cor vermelha assinalaria a transformação da menina em uma mulher e, o lobo não teria prendido a pobre senhora adoecida no armário para enganar e, sim, teria a comido como jantar. E, o caçador também não existia e Chapeuzinho Vermelho também acabou se tornando uma vítima do animal, com a história acabando sem nenhum tipo de final feliz.

Palavras-Chave: Contos de Fada. Psicanálise. Educação. Sociologia. Significado. Representações psíquicas.

 

 

 

Há versões do conto Chapeuzinho Vermelho de autoria dos camponeses franceses, de Chales Perrault[1] e dos Irmãos Grimm, e com base na análise do discurso, percebe-se as construções ideológicas no percurso dos contos de fadas.

As origens do “Chapeuzinho Vermelho” remontam ao século X na França, onde os camponeses contavam a história que depois os italianos reproduziram. Ademais, algumas outras versões com um título semelhante foram criadas: “La Finta Nona” (A falsa avó) ou “A história da avó”. Eis que o personagem de um ogro[2] substitui o lobo que imita a avó.

Na encarnação francesa do século XVII de “Chapeuzinho Vermelho”, o lobo é claramente um sedutor que vagueia pelos salões franceses pronto para atacar moças desavisadas. É, portanto, uma metáfora para transmitir uma mensagem mais ampla sobre ocorrências de sedução ou estupro no mundo real.

Nestes contos, muitos historiadores falam de canibalismo na trama, pois a menina confunde os dentes de sua avó com arroz, sua carne com bife e seu sangue com vinho, então ela come e bebe, e depois pula na cama com a besta e acaba sendo morta por ela.

Alguns folcloristas rastrearam registros de outras versões[3] folclóricas francesas da história, nas quais a Ruivinha percebe a tentativa de trapaça do lobo e então inventa uma história do tipo “preciso desesperadamente usar o banheiro” para sua avó para escapar. O lobo relutantemente aprova, mas a amarra com um cordão para impedi-la de fugir, mas ela ainda consegue escapar.

Esse conto de fada atravessou a oralidade e superou a barreira temporal e, foi um dos primeiros registros dessa narrativa transcrita em O grande massacre dos gatos, de autoria de Robert Darnton[4]. Mais tarde, Perrault criou a primeira versão escrita oficial da narrativa onde constava moral explícita no final.

Os contos, na sua forma oral, eram narrados por camponeses e visavam o entretenimento e podiam representar seus desejos. Aliás, os contos, anteriormente à revolução burguesa, eram narrados por adultos para um público receptor, quee era constituído por adultos e, também por crianças. Atualmente, cogita-se que o contos de fada seria um gênero específico para crianças, e dentro dessa perspectiva, rasura-se a história e  de todas as especificidades que ele inclui.

Na versão de Darnton a menina não foi nomeada como Chapeuzinho Vermelho, porém, o percurso da personagem é o mesmo da narrativa que conhecemos atualmente, e o encontro com o Lobo Mau é o clímax. Ela chegava à casa da avó, onde o lobo já se encontra. O lobo diz a ela para comer a carne e beber o vinho que se encontrava na cozinha e, ela o obedeceu, mesmo com a advertência de um gato, qua a chama de menina perdida.

Na verdade, a carne que a menina  comeu era a carne da avó, e o vinho era o seu sangue. Há, na versão dos  camponeses do conto, a tragédia da mutilação da avó e a posterior cena de  canibalismo, levada a efeito pela menina.

Depois o lobo pede a ela para tirar  a roupa, peça por peça, jogando cada uma das peças no fogo, e após isso ele  ordena que ela venha deitar-se com ele. O famoso diálogo acontece e, ao  final, ele a devora. A história acaba. Desnudamento e sangue – final trágico.

Verifica-se que pelo enredamento, que a história se modificou muito com o tempo,  até chegar à versão mais amenizada do conto, dos Irmãos Grimm. Por fim, em 1857,  os Irmãos Grimm[5] concluíram o conto como o conhecemos hoje, reduzindo os tons sombrios de outras versões.

Sua prática foi continuada pelos escritores e adaptadores do século XX que, na esteira da desconstrução, da análise com base na psicanálise freudiana e da teoria crítica feminista, produziram versões bastante refinadas do popular conto de fadas infantil.

De acordo com o estudo de Jung sobre as raízes da simbologia presente nos contos de fadas e mitos, Nelly Novaes Coelho, em O conto de fadas, refere-se à existência de um “fundo psíquico comum e inconsciente” gerador de arquétipos, os quais dão origem a “impulsos psíquicos comuns a todos os homens”, ou a “imagens” capazes de tomar a forma semelhante de “emoções, fantasias, medos etc.” criadas por “fenômenos da natureza ou por experiências existenciais decisivas (com a mãe, com as relações homem-mulher, com o confronto de forças desiguais ou injustiça etc.)”.

Já Charles Perrault publicou sua versão de Chapeuzinho Vermelho em 1695, em uma coletânea de contos que foi colhida da tradição oral.

A coletânea tinha como título "Histoires ou contes du temps passés, avec des moralités" e como subtítulo Contes de ma mère l'Oye (os Contos da Mãe Gansa). Já se antevê a perspectiva de ensinamento, recolhida da prática da narração oral, permanece, porém, oral para o escrito. É preciso lembrar alguns aspectos das condições de  produção   das   narrativas   perraultianas   para   que   possamos   depois  fundamentar  algumas  críticas  que  teceremos   acerca  da  leitura  que  Bettelheim faz dos contos desse autor francês.

Charles Perrault foi influenciado por uma sobrinha na escrita de  suas narrativas. Essa sobrinha, Marie-Jeanne L'Héritier de Villandon, que  foi poetisa e romancista, teve um papel decisivo no teor de alguns dos  contos do seu tio. A história dos Contos da Mamãe Gansa[6] é circundada de  polêmicas em relação à autoria: seria de Charles Perrault ou de seu filho,  Pierre Perrault? De acordo com Marc Soriano.

A elaboração da  obra  deveu-se  a  uma  parceria:  o  filho  escrevia  e  o  pai  aprimorava as narrativas, dando a elas a forma literária e enriquecendo-lhes  a temática, muitas vezes  problematizando-as.  Mas o que não pode ser  esquecido foi a participação de Mlle L'Héritier nos contos perraultianos. A  sobrinha   de   Charles   Perrault,   juntamente   com   outras   mulheres,  constituíram o grupo das Preciosas, que foram chacoteadas por Molière,  em suas peças teatrais, como: As preciosas ridículas e As mulheres sabidas.

Tais mulheres desempenharam a função, nos salões da época, a divulgar os ideias que antecipavam o feminismo que depois viera a ser conhecido, bem como a liberdade de ideias e a defesa por um espaço social e cultural mais digno para as mulheres.

Nos contos de Perrault uma variedade de enredos que privilegiavam a moral ingênua, tal peculiar aos contos populares, tais como Barba Azul e As Fadas, onde as mulheres recebiam prêmios e castigos especiais, que mostravam como o sexo feminino era manipulado pela sociedade patriarcal

Outro conto como Pele de Asno[7] que tem como temática o incesto, se vê a denúncia da condição oprimida da mulher que vivia à mercê do destino imposto pelos homens, em sua maioria, de cunho bárbaro, cruel e agônico.  Perrault, com Barba Azul,  delata a situação das mulheres vitimadas pela violência física e moral dos  homens.

E, para pintar literariamente o enredo de Barba Azul[8], ele tomou  como modelo maridos cruéis, que não eram escassos na velha França, como  o senhor de Fayel, que assou o coração de sua esposa; ou na Inglaterra,  como o Rei Henrique VIII, que, bem semelhante ao Barba Azul, matou  cinco esposas e quase mata a sexta, Catherine de Parr.

Nesse sentido, a condução que Perrault atribuía ao enredo de  suas  narrativas  proporcionava  para  a  sociedade  denúncias  sobre  as  atrocidades sofridas pelas mulheres. Para Mariza Mendes (2000, p. 50),  “esse fato pode não ser uma prova do feminismo de Perrault, mas é um dos  fatores que levam à conclusão de que foram as 'preciosas' as responsáveis  pela publicação dos “Contos da Mamãe Gansa”.

Nota-se que o público-alvo inicialmente de Perrault era preferencialmente as mulheres e a opção por esse público dirigiu grande parte dos recursos utilizados por seu autor. É importante evidenciar, nesse momento, que a primeira versão escrita da história de Perrault não contava com eufemismos em seu desfecho. O lobo come a menina e, depois, só aparece uma moral, que reforçará a noção de que “sair do caminho” é sempre muito perigoso.

 A cena do lobo ordenando que a menina tire a roupa permanece.  Perrault só retira o ato de desnudamento peça a peça, de strip-tease e a cena  de canibalismo. Assim, temos  mantidos os supracitados elementos em  função do público que era esperado pelo seu autor. Atualmente, quando se  cogita em Perrault, em muitos estudos, fala-se de um escritor que escreveu  histórias para crianças, o que é um equívoco, uma rasura na história dos  contos de fadas.

O conto em estudo foi uma das histórias mais recontadas até hoje,  ganhando várias versões, paródias, releituras, adaptações e estudos ao  longo   de  séculos.  Chapeuzinho  Vermelho  se  tornou  uma  história  diferenciada devido à diversidade de variações existentes:

“Apesar de existirem diferentes versões, há poucas  histórias similares à de Chapeuzinho. Os contos de  fadas são extremamente repetitivos, uma leitura mais  extensiva nesse território revela que uma mesma  forma aparece, com variações superficiais, sobre  vários títulos. Nesse sentido, Chapeuzinho é ímpar”. (In: CORSO, 2006, p. 55).

A narrativa de Chapeuzinho Vermelho foge  ao esquema das outras narrativas dos contos de fada, uma vez que elas se  caracterizam pela repetibilidade dos esquemas e temas. Um exemplo disso  é  o  tema  da  mãe  que  morre,  encontrado  em  Branca  de  Neve,  Gata  Borralheira,  Pele de Asno e outras; ou o tema do irmão mais novo  injustiçado; ou o esquema das três provações pelas quais o herói tem que  vencer para alcançar seu final feliz.

A narrativa de Chapeuzinho rompeu,  então, com essa repetibilidade; e talvez a sua singularidade seja o motor da intensa reprodutibilidade que ela desencadeia.

Obviamente, não se pode  descartar também a curiosidade que seu tema gera, ou seja, a iniciação sexual. Quer  pela sua singularidade ou pelo seu tema instigante, o fato é que a história  continuou – e continua – incitando novas reescritas ao longo dos séculos.

Em 1857, os Irmãos Grimm recontaram a história com a finalidade de atenuar seu conteúdo, tendo em vista a recepção do conto pelo público  infantil. É preciso ressaltar que a versão dos Irmãos Grimm foi escrita sob  determinadas  condições de produção, e tais condições direcionaram os  recursos  que  primavam  pelo  eufemismo  da  tragédia  que  a  narrativa  continha – na versão oral e na versão francesa de Charles Perrault.

Com  a revolução burguesa, já instaurada, agia em  torno da reformulação da Escola – e da sociedade como um todo. Faltava  mão  de  obra  qualificada  e  a  burguesia  percebeu  que  era  necessário  modificar a escola, tornando-a mais funcional e aumentando a qualidade do  ensino.

Um dos aspectos falhos da antiga escola eram os livros que eram  dados para a criança  ler, pois traziam textos que não falavam do seu  universo, do seu imaginário. Para esse intento, era necessário agir em prol  de uma produção de textos que fossem coerentes com o universo infantil e,  nesse contexto, foi criada a literatura infantil.

No processo de constituição  dessa literatura foram recolhidos os  contos populares orais (alguns já  registrados pela literatura[9] escrita, como os de Perrault, na França), já que  eles traziam na sua estrutura o simbólico, o mágico.

Os Irmãos Grimm  foram escritores que trabalharam nesse projeto;  por esse motivo eles  atenuaram os conteúdos, eufemizaram algumas temáticas, como no caso de  Chapeuzinho Vermelho, em que temos a inserção da figura do caçador, cuja  função é tirar Chapeuzinho e sua avó – vivas – da barriga do lobo e dar à  história um final feliz.

É importante destacar que os Irmãos Grimm retiram a cena em que o lobo ordena que a menina tire a roupa antes de ir para a  cama, existente nas versões oral e de Perrault.

Desde essa narrativa de tradição oral – que  consideramos ser a mais antiga –, passando por Perrault,  até a história como é contada hoje – praticamente a  versão dos Grimm –, os aspectos mais eróticos (em  que Chapeuzinho se despe para entrar na cama do  lobo-vovozinha) e canibalísticos (quando, antes de  comer a menina, o lobo lhe serve a carne e o sangue da  avó) foram sendo suprimidos, substituídos e  suavizados.

Esse abrandamento acarretou outras mudanças no que diz respeito  às condições de produção (considerando-se também condições de recepção  e circulação) – o que determina o significado dos conteúdos e designa a interferência temporal do conto – bem como, e agora especificamente, o conteúdo que Chapeuzinho Vermelho levava para a avó em sua cesta, nas  histórias dos camponeses franceses, do Charles Perrault e dos Irmãos  Grimm.

Na primeira versão, a dos camponeses franceses, o conteúdo da cesta era  pão e leite, alimentos esses que são representativos de fartura e sustento. Além disso, faz-se mister ressaltar que pela época em que a história era  contada  e  tendo  em  vista  que  eram  camponeses  que  a  descreveram,  remetendo assim a pessoas que vivem no campo, com atividade ligada à  agricultura e pecuária;  tais alimentos poderiam representar o sustento  básico para alimentação e o fortalecimento da avó que estava doente, além  de poder ser de fácil acesso na época, considerando os meios de produção  da história na oralidade.

Na versão de Charles Perrault, o conteúdo da cesta levada pela é  menina é atinente a tortas e potezinho de manteiga. Eis que se pode ter uma  leitura ambígua dos alimentos, tendo em vista que a torta poderia possuir  dois significados; o primeiro e mais óbvio refere-se ao alimento com intuito  de saciar a fome; além desse, pode-se depreender que há outro sentido  implícito, e, dessa maneira, outra provável análise de torta estaria ligado à  menina torta que desobedece a mãe e escolhe o caminho mais longo, além  de dar ouvidos e se deixar levar pelas palavras do lobo, figura perigosa.

A versão dos Irmãos Grimm, os alimentos levados na cesta para a avó são bolo e garrafa de vinho. Tais alimentos são ligados à questão  das condições de produção em que a história foi escrita, tendo em vista que  na Europa o vinho já era bebida bastante consumida e popularizada.

O bolo foi um alimento introduzido que, de maneira consciente ou não pela escrita  dos Irmãos Grimm, já sugeria um trocadilho com lobo, trocadilho esse que seria aproveitado por Chico Buarque de Holanda, em sua versão do século XX, a Chapeuzinho Amarelo. "Chapeuzinho Amarelo" conta a história de uma menina que amarelava de medo. Ela tinha medo de tudo e isso influenciava sua vida. Tinha dificuldade para brincar, se divertir e até dormir. O seu maior medo era encontrar o Lobo Mau.

Quanto na dos Irmãos  Grimm, “[...] quando Chapeuzinho Vermelho leva de novo doces para a avó”. (BETTELHEIM, 2002).  Todavia, os outros  alimentos, supracitados e  explicitados não podem ser negligenciados,  tendo em vista que são significativos para a leitura, além de designarem  determinado período de  época  e sentidos importantes para os leitores  interpretarem.

Bruno Bettelheim teceu ainda várias outras críticas sobre a produção  do conto de Perrault, e afirma que esse escritor fez com que seu conto  perdesse parte da sua atração, já que “fica óbvio que o lobo não é um animal  ávido, mas uma metáfora, que deixa pouco à imaginação do ouvinte. [...]  Assim, a imaginação do ouvinte não entra em ação para dar um significado  pessoal à estória”. (BETTELHEIM, 2002).

 Segundo apanhado histórico  realizado por Paula Mendes (2009), metáfora já foi entendida por diversos  prismas. Desde a época dos clássicos são definidos significados para tal  expressão. Para Cícero, Horácio, Longinus e Quintilliano essa era uma  forma  nobre  para   embelezamento  da  linguagem  vulgar.

Afinal, com o romantismo[10], tal metáfora assume outros parâmetros estéticos. E traduz uma projeção imaginativa da verdade.  Assim, a metáfora é, deste modo, indissociável da linguagem no seu todo.

Por esse recurso do texto de Perrault dá possibilidades de leituras ao lobo, uma vez que lê-lo como representação da figura masculina é uma forma de entender o imaginário por meio de experiências reais. Visto que as interpretações são mutáveis de leitor para leitor, relacionaremos, então, os sentidos possíveis para o texto com as condições de recepção da época. No  momento de criação e circulação do texto, vigorava a questão feminista, por  isso a leitura recorrente do lobo como o homem sedutor (inclusive na moral  escrita por Perrault).

A  metáfora,  como  evidencia Paul Ricoeur (2005, p. 228) “denota a distância entre a letra e o sentido virtual, e conota todo um regime cultural”, e por isso o espaço da linguagem metafórica é um “espaço conotado”. Nesse sentido, a opção por uma linguagem fortemente metafórica faz com que o conto de Perrault  ultrapasse os tempos e revigore seus sentidos sempre.

No conto de Perrault, o diálogo entre Chapeuzinho Vermelho e o lobo possui marcas de sexualidade e a figura do lobo nos remete à figura masculina. Nas palavras  de  lobo,  também  podemos  verificar  marcas  de sedução sexual, pois este se utiliza de frases como: “para te abraçar melhor”, “para te ver melhor”, “para escutar melhor”, “para correr melhor”, “para te comer”. De acordo com essa análise, podemos afirmar que Perrault constrói um diálogo com intenções sexuais e que o lobo representa um homem sedutor.

 

Nas três versões abordadas pode ser vista a figura do Lobo como metáfora do homem sedutor, de forma velada ou direta. Porém, o que de imediato não se pode perceber é o conteúdo simbólico contido em tal personagem. Recorrendo ao Dicionário de símbolos, diversos significados do símbolo “lobo” são encontrados.

No que diz respeito a personagem Chapeuzinho Vermelho, ela foi uma menina criada dentro de um padrão familiar que dita que as moças devem reprimir sua sexualidade, no sentindo em que é alertada para tomar cuidado com seres masculinos desconhecidos.

No conto dos Irmãos Grimm, embora não seja tão explícito como no de Perrault, a questão sexual também está presente no diálogo entre Chapeuzinho Vermelho e o lobo.

As versões desse conto, por mais que reforcem a puerilização da menina, por mais que amenizem a tragédia final, nunca deixarão de sugerir o efeito de um sentido que é fortíssimo no conto, o da iniciação à sexualidade. O próprio título do conto demarca uma simbologia que aponta para isso: o chapéu, que é vermelho, cor da paixão e também do defloramento.

Avaliando a versão dos camponeses franceses, esse é o conto  que mais possui marcas de sedução sexual. Neste há um jogo de sedução que  é  feito  entre  o  lobo  e  Chapeuzinho  Vermelho.  Durante  o  diálogo  é  perceptível tal jogo, pois, para cada peça de roupa que a menina tira, ela  pergunta ao lobo onde colocar a peça.

Na versão dos camponeses a questão do capuz vermelho não é citada, encontra-se apenas a figura de uma menina que deixa sua casa para encontrar a avó. Então como a transferência da sexualidade é feita nesta história? Ao que tudo indica é também através da avó.

Como o Lobo ao chegar à casa da avó não a devora e sim a mata, despejando seu sangue em uma garrafa e cortando seu corpo em fatias, quando Chapeuzinho finalmente chega ao seu destino já encontra o Lobo disfarçado de sua avó, recomendando que ela se servisse da carne e do vinho que estavam na copa. Servindo-se da carne e do vinho, um gato lá presente sentencia: “Comer da carne e beber do sangue de sua avó!” (DARNTON, 2001: 21e 22)

Partindo do significado simbólico do gato como animal que carrega a sagacidade, engenhosidade e portador do dom da clarividência, tem-se adiantado o futuro de Chapeuzinho, nas palavras do gato, como “menina perdida”. Comendo as partes do corpo (a carne) e bebendo do sangue (o vinho) da avó, os símbolos ocultos de transferência de sexualidade passam a conotar a fragilidade da carne perante o pecado, dentre eles o impulso sexual incontrolável, e se vê no vinho um símbolo do conhecimento e de iniciação. Assim o ato canibal de Chapeuzinho é entendido como o tomar do conhecimento da avó, para iniciação sexual. Não se tem, desta forma, a passagem da sexualidade por meio do capuz vermelho, mas se pode tentar encontrá-la de forma encoberta nos seus símbolos.

Quando a menina se deita na cama com o lobo e inicia suas perguntas e o lobo as  responde, então se torna claro que o lobo representa a figura masculina. Chapeuzinho percebe que a vovó (lobo) é peluda e o lobo afirma  que os pêlos são para aquecê-la.

Em seguida, a mesma percebe que a avó  (lobo) possui ombros largos e ele afirma que são para carregar lenha. Pêlos  e ombros  largos remetem à figura masculina, visto que são atributos  consideráveis nos corpos dos homens. Além disso, o fato de ele mencionar  um trabalho realizado por ele, também é uma alusão aos homens, pois o  trabalho de carregar lenha é atribuído geralmente aos homens da família.

Em  “A psicanálise dos contos de fadas”, o autor afirma que a garota lida com a ambivalência infantil que, nesse caso, se refere ao princípio de viver pelo prazer ou pela realidade.  Desse modo, segundo o autor, na versão dos camponeses franceses, os dois caminhos que Chapeuzinho pode escolher – o das agulhas ou o dos alfinetes – estão atrelados a essa ambivalência, sendo o caminho das agulhas relacionado com o  caminho do prazer e o dos alfinetes com o da realidade.

No entanto, constatamos uma contradição quando Bettelheim afirma que a garota opta pelo caminho dos alfinetes, tendo em vista que, na versão dos camponeses franceses.

Então, ao afirmar que Chapeuzinho Vermelho optou  pelo caminho dos alfinetes pode trazer ao conto um efeito contrário ao que  é transmitido pela versão dos camponeses. Se a garota escolhe o caminho  das agulhas, segundo o próprio Bettelheim, ela escolhe o caminho do prazer e não da realidade, já que este está relacionado ao caminho dos alfinetes.

Dessa forma, a escolha da menina é de fundamental importância para a  revelação de sua desobediência, que consiste em desviar-se do caminho que  lhe fora ordenado para  aventurar-se no caminho do prazer e, portanto,  afirmar a escolha contrária é o mesmo que assegurar-se da obediência de  Chapeuzinho ao caminho que sua mãe lhe pedira para seguir.

Bettelheim  se  posicionou  contrário  à  moral  evidenciada  por  Perrault. O psicanalista diz que Perrault não desejava apenas entreter o  público, mas também dar uma lição de moral. Afirma ainda que esta,  juntamente com um texto metaforizado, deixa o conto admonitório, ou seja,  com um tom de advertência.

A análise da moral escrita por Perrault, consideramos que  os   significados  não  são  encerrados.  Reconhece-se  com  o  tom  da  advertência da moral, porém consideramos que a metaforização presente  no conto também se repete na moral, o que leva o leitor a participar da construção de inúmeros sentidos.

A própria disposição de como é colocada  a moral, mostra o caráter simbólico-semântico utilizado por Perrault, visto  que é a moral construída em versos, em formato poético, o que reafirma o  caráter de “texto-aberto”, com valores que só o leitor, com sua memória  social e discursiva, será capaz de construir.

Hoje, por exemplo, o conto de Perrault  tenha como leitores o público infantil, a narrativa não teria significados  prontos,  as  lacunas  deixadas  pelo  escritor  confirmam  o  caráter  de  significados em aberto. Por exemplo, Bettelheim faz uma crítica de que, no  conto de Perrault, ninguém adverte Chapeuzinho sobre a escolha de seus  caminhos.

Essa lacuna  deixada pelo autor é que faz com que o leitor  construa os seus próprios entendimentos, interpretações.  

Bettelheim aprovou o conto dos Irmãos Grimm pelo fato de este não  tem uma moral explícita, e, segundo o psicanalista, alguns direcionamentos  feitos  pelos  alemães  colaboram  na  formação  do  caráter  da  criança,   principalmente de meninas com problemas edípicos na puberdade.

Em  nossa análise, acreditamos que, mesmo que o conto dos Grimm não tenha uma moral explícita, é muito mais pedagogizante do que o de Perrault, visto  que  os  Irmãos   Grimm  direcionam  os  significados  da  narrativa  e  “solucionam” o problema ao final do conto, limitando a imaginação do  leitor. Já a moral metafórica de Perrault deixa maiores lacunas que ficam a  cargo imaginativo do leitor.

Na versão dos Irmãos Grimm, a moral  aparece explicitamente  colocada no último pensamento da menina no  enredo, que se elabora como fecho do conto. Nesse caso, entendemos que a  moral,  colocada  como  expressão  da  própria  menina,  tem  um  efeito  enormemente moralizador.

Os contos de fadas, por sua  vez, apresentando  diversas versões, paródias, releituras, adaptações só  demonstram a riqueza de contextos dentro do universo interpretativo que o  conto pode oferecer.

A análise de Bettelheim, no entanto, desconsiderou a polissemia  dos textos, seu friccionar com a história e seus dobramentos de sentidos.  Desconsiderou   que   a   literatura   é   um   “efeito   de   repetição   e   de  reconhecimento que faz da imagem como que a recitação de um mito”.

Não se pode negar é a força e a presença dessas histórias, cuja  matéria humana e literária conseguiu sobreviver através dos tempos e continua  reverberando nos dias de hoje, em adultos que não apagaram – e não apagaremos jamais –  a lembrança da menina de capuz vermelho que leva doces para a vovozinha, ainda que  certas versões falem em vinho, outras, em bolo, outras não falem, sequer, de avó. Estudar  contos de fadas é estudar parte daquilo que constitui a nossa humanidade e a nossa herança cultural[11].

 

Referências

 

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BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Tradução de Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.

CORSO, Diana L.; CORSO, Mário. Fadas no divã: Psicanálise nas  histórias infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006.

DARNTON, Robert. O grande massacre dos gatos: e outros episódios  da história cultural francesa. Tradução de Sonia Coutinho. 2 ed. Rio de Janeiro:  Graal, 1986.

DUFLO, Colas. O jogo: de Pascal a Schiller. Tradução de Francisco Settineri e Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.

FERNANDES, Cleudemar. Análise do Discurso: Reflexões introdutórias. 2 ed. São Carlos: Claraluz, 2008.

FROMM, Erich. A linguagem esquecida. Tradução de Octavio Alves Velho. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

GAMA-KHALIL, Marisa Martins ; FIGUEIRA, Bruno de Sousa; GOMES, Eduarda Lamnes; QUIANZALA, Gabriela M.C.; DE OLIVEIRA, Lívia Maria; BORGES, Luísa Inocêncio; COSTA, Mariane, C.; PALUMA, Vânia Carolina G. Chapeuzinho Vermelho - Visão e Contravisão de Psicanálise nos contos de Fadas, de Bruno Bettelheim. Revista UFU/ILEEL.

GRIMM, Jacob e Wilhelm. Contos de fadas. Tradução de David Jardim Jr. Belo Horizonte: Vila Rica, 1994.

GRIMM, Jacob e Wilhelm. Chapeuzinho Vermelho. Tradução de Verônica Kühle. Porto Alegre: Kuarup, 1987.

HOLLANDA, Chico Buarque. Chapeuzinho Amarelo. Ziraldo (Ilustrador)São Paulo: Autêntica infantil e juvenil. 40ª  edição. 2017.

MENDES, Mariza B. T. Em busca dos contos perdidos: o significado das  funções femininas nos contos de Perrault. São Paulo: Editora UNESP,  2000.

MENDES, Paula. Metáfora. In: E-Dicionário de Termos Literários.  Coord. de Carlos Ceia. ISBN: 989-20-0088-9 disponível em  http://www.fcsh.unl.pt/edtl.

PÊCHEUX, Michel. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre et. al.  Papel da memória. Trad. José Horta Nunes. 2 ed. Campinas: Pontes, 1987.

PERRAULT, Charles. O Chapeuzinho Vermelho. Tradução de Francisco Balthar Peixoto. Porto Alegre: Kuarup, 1987.

RICOEUR, Paul. A metáfora viva. 2 ed. São Paulo: Edições Loyola,  2005.

ROCHA, Waldyr Imbrisi. As várias histórias de Chapeuzinho Vermelho: Repressão e Moral nos Contos de Fadas. Revista ANAGRAMA: Revista Científica Interdisciplinar da Graduação. Ano 3. Edição4. Junho-Agosto de 2010.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992.

 

 

 

 

 


[1] A estrutura deste conto de Perrault – semelhante à de vários outros – está de acordo  com seu ideal, explícito no seu prefácio: fazer entrar uma moral útil,  instruindo e divertindo ao mesmo tempo. O escritor francês foi um católico convicto, que  via uma superioridade incrível do Cristianismo em relação ao Paganismo e chegou mesmo  a escrever uma epopeia cristã, apresentando-se como grande exemplo de uma “arte moral”.

[2] A palavra ogro vem do latim orcus que significa inferno. No inglês e no francês a grafia é ogre. Em muitas ocasiões ogro é sinônimo de Orc, que é igualmente uma figura mitológica. A palavra francesa ogre terá sido inicialmente utilizada por Charles Perrault, escritor francês de contos infantis.  Na literatura há outras referência a ogros, sendo que o ogro Shrek se tornou mundialmente famoso através do filme que tem o seu nome como título. O ogro do filme Shrek possui características distintas dos tradicionais ogros por ser bondoso, sossegado e não devorar seres humanos.

[3]Le Petit Chaperon Rouge”, de Charles Perrault A primeira versão a ser registrada foi em 1697, fazendo com que a história chegasse à Europa. O escritor francês retirou as imagens fortes que indicavam sexo e canibalismo. Na edição de Perrault, um grande nome dos contos de fadas, a avó manda fazer um chapéu vermelho para a menina, que serviu tão bem que ela não tirava, ganhando o apelido de Chapeuzinho Vermelho.

[4] Robert Darnton (Nova Iorque, 10 de maio de 1939) é um historiador cultural e bibliotecário estadunidense. Lecionou em Princeton de 1968 a 2007, quando se tornou professor da Universidade Carl H. Pforzheimer também assumiu a direção da Biblioteca da Universidade Harvard. Abraçou a missão de digitalizar e tornar acessível gratuitamente pela internet o conjunto da produção intelectual da universidade norte-americana.

[5]Little Red Cap”, Irmãos Grimm Em 1857, os escritores Jacob e Wilhelm, consagrados por terem se dedicado ao registro de várias fábulas durante sua carreira, suavizaram ainda mais o conto para passá-los para as crianças em seus livros. Na história deles, Chapeuzinho ganha capuz de veludo vermelho e também ganha o apelido pôr a peça ter servido bem.

[6] No Brasil e em outros países, a Mamãe Gansa (ou Mãe Gansa) é uma figura bem conhecida na literatura de contos de fadas. Embora o nome tenha sido popularizado a partir do século XVII pelo livro Contes de ma mère l'Oye de Charles Perrault, a existência de mulheres que contavam histórias (como está registrado na capa da primeira edição do livro), certamente é muito mais antiga e não representa uma pessoa real. "Mamãe Gansa" é o nome que foi dado a uma arquetípica mulher do campo, a qual teria sido a origem das histórias e cantigas atribuídas à personagem Mamãe Gansa. Embora nenhum(a) escritor(a) jamais tenha sido identificado(a) sob tal nome, a primeira menção conhecida a ele aparece numa crônica semanal em versos, La Muse Historique (1660?) de Jean Loret, publicada regularmente durante muitos anos.

[7] Em "Pele de asno", uma princesa precisa fugir do pai, um déspota obstinado que resolve casar-se com a própria filha. A herdeira escapa disfarçada sob a pele de um asno e leva consigo vestidos maravilhosos, que cabem em uma casca de noz. Neste reconto, o asno e a princesa têm a oportunidade de relatar suas próprias versões dos acontecimentos

[8] Barba Azul é o personagem principal de um famoso conto infantil sobre um nobre violento e sua esposa curiosa.  Barba Azul era um rico conde, assustador por ser muito feio, com uma horrível barba azul. Ele já se tinha casado seis vezes, mas ninguém sabia o que tinha acontecido com as esposas, que desapareceram. Quando o Barba Azul visitou um de seus vizinhos e pediu para se casar com uma de suas filhas, a família ficou apavorada. O Barba Azul acabou por convencer a filha caçula. Os dois casaram-se e foram viver no castelo do nobre. Embora conhecido como um conto popular, o personagem Barba Azul parece derivar de lendas relacionadas com indivíduos históricos da Britânia. A origem mais conhecida e frequentemente citada é do nobre bretão do século XV e notório assassino, Gilles de Rais.

[9] Todorov sustenta que o conto de fadas se insere no gênero maravilhoso como uma  de suas variedades carregada de acontecimentos sobrenaturais, tipificados pela  forma narrativa e não pelos acontecimentos sobrenaturais em si. Nos contos de fadas, estabelece-se um acordo tácito entre leitor e instância  narrativa, em que há uma aceitação dos elementos mágicos sem questionamento,  respeitando-se a lógica interna da narrativa, manifestada através do espaço-tempo  imemorial e do faz-de-conta.

[10] No momento do Romantismo o homem passa a compreender o  mundo e o próprio homem de uma forma diferente. Há um certo ideal humanitário, um  certo aspecto religioso no ato de encarar a realidade, predominando uma certa esperança e  confiança na vida. A arte, entretanto, nunca é considerada um fim último; os românticos não conheceram a  concepção de arte pela arte, a não ser na decadência do movimento e em certas  ramificações posteriores.

[11] Na  Educação  Infantil  há  situações  de  preconceito  para  com crianças  que  gostam  de  brincar  com  brinquedos  simples,  como carrinhos  e  bonecas,  mas  pouco  se  discute  sobre  brincadeiras  que envolvem  violência.  Parece  uma  inversão  nos  valores,  como  se  a violência fosse normal e o brincar de boneca para um menino fosse o fim de sua virilidade. O sentimento do amor parece ser aceito apenas se  for  entre heterossexuais,  outras formas de  amor  são  negadas em muitas histórias infantis, contos de fadas e relatos de educadores.

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 19/08/2024
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