A Bela e a Fera e a decodificação humana.

 

 

Resumo: O conto “A Bela e a Fera” foi escrito originalmente por Gabrielle Suzanne Barbot de Villeneuve e lançado no livro La jeune américaine, em 1740. Dezesseis anos depois, Jeanne-Marie Leprince de Beaumont publicou uma segunda versão na revista Magasin des Enfants, que popularizou a história. A possível origem do conto tem seu fundamento no mito Eros e Psique, escrito por Lucio Apuleio, em Atenas, 125-180 d.C., na obra Metamorfoses. Os contos de fadas encantam crianças e adultos desde sua criação, que data da época medieval. O mais instigante nessas simples histórias é que, além de entretenimento, elas são carregadas de valores e costumes.

O conto “A Bela e a Fera” elucida várias questões como sexualidade, relações afetivas e amorosas, puberdade e, psiquismo adolescente.

 

Palavras-chave: Psiquismo. Psicanálise. Contos de Fadas. Sexualidade. Casamento.

 

 

 

 

 

 

No original há uma alusão a um incesto simbólico, visto que a rainha e a fada malvada são polos opostos da imagem arquetípica da mãe. No filme o príncipe perdeu a mãe, foi criado por um pai cruel e por isso se tornou um homem narcisista e infantil e que precisa ser redimido. Ambas versões mostram um conflito materno do masculino. No original há a relutância em relação ao incesto. A mãe boa (rainha) é substituída pela mãe terrível que quer devorar a masculinidade do príncipe e assim ele precisa lutar contra esse incesto para sobreviver.

 

A consciência patriarcal, então, luta para se separar do inconsciente e assim ficar livre de suas influências. Contudo, colocar o patriarcado e a separação do ego em relação à consciência em primazia e em um estado mais elevado de consciência traz problemas também, como mostra o conto A Bela e a Fera. Ao desprezar o feminino e matriarcal, nos deixaram amaldiçoados. Se por um lado o patriarcado foi muito importante para o desenvolvimento da intelectualidade, tecnologia e cultura, por outro o aspecto patriarcal da consciência é separatista, pautado na perfeição e não na completude, tem medo da morte e do inconsciente e não aceita o seu destino.

 

Ao buscar a perfeição a consciência patriarcal exclui os defeitos e o mal, e com isso exclui a totalidade. E todo aspecto reprimido da consciência se volta novamente se vingando dessa repressão. Vemos isso nas neuroses e doenças psicossomáticas. Uma pessoa neurótica pode ser comparada a uma pessoa amaldiçoada. Pois alguém neurótico pode ser impelida a agir de forma destrutiva consigo próprio ou com os outros. Von Franz (2010) aponta para o tema da vingança feminina no conto A Bela Adormecida.

 

Nesse conto a fada esquecida e desprezada se vinga na princesa fazendo com que ela durma 100 anos. Isso simboliza que o feminino dormiu em nossa sociedade e com isso nenhuma vida acontece, só há a esterilidade. A fada malvada, ou feiticeira no conto e no mito transforma, nesse caso, o príncipe em animal. Isso significa que a consciência desceu ao nível animal e primitivo. O masculino (tendo os homens como representantes), sucumbe aos aspectos animalescos e instintivos apenas em relação ao feminino.

 

Ao abordar o caráter transformador do arquétipo de animus e o processo de integração deste em paralelo ao processo de individuação, no conto “A Bela e a Fera” que nos aponta para a metamorfose do noivo-animal em príncipe. Em referência ao processo de individuação, analisamos o símbolo do casamento presente de vários contos de fada, representando símbolo alquímico do processo, representando a união dos opostos, na correspondência mental e psíquica da totalidade.

 

“A Bela e a Fera” (ou a Bela e o Monstro, em Portugal) é tradicional conto de fada de origem francesa, cujo título original é La Belle et la Bête, sua primeira versão foi publicada por Gabrielle-Suzanne Barbot, Dama de Villeneuve em La Jeune Ameriquaine et les Con descontavam suas frustrações sobre Bela, que humildemente não reclamava e ajudava seu pai1 como podia.

 

Foi escrita por Gabrielle Villeneuve, e mais tarde adaptada em conto educativo para crianças por Madame Jeanne-Marie de Beaumont, a história original de A Bela e a Fera é um romance voltado para o público adulto. Nela, o príncipe se torna uma Fera não como lição de humildade, mas devido a uma vingança cometida por uma bruxa que se apaixona por ele e não pode desposá-lo. Ele não se torna uma Fera por ser selvagem, mas sim para se tornar uma pária da sociedade.

 

Uma das inspirações da vida real pode ter sido a história do espanhol Pedro González, nascido com hipertricose, a chamada “síndrome do lobisomem”. Pedro não recebeu educação formal até os 10 anos de idade, quando foi vendido pelo próprio pai ao rei Carlos I da Espanha. Tendo o navio em que viajava sido atacado por piratas franceses, estes o mandaram para o rei Henrique II, da França, como animal de estimação — naquela época, possuir criaturas provenientes de terras distantes era símbolo de status e fonte de prestígio para seus “proprietários”.

 

Nos domínios de Henrique II, o rei francês resolveu submetê-lo a uma experiência para saber se ele poderia ser humanizado. Assim, Pedro ganhou o nome latino de Petrus Gonsalvus, foi vestido com roupas nobres e recebeu educação sofisticada. Surpreendendo a corte, Pedro aprendeu a ler, a escrever, a falar várias línguas e agir com etiqueta — afinal, era um ser humano como qualquer outro.

 

Dessa forma, o rei passou a pagá-lo para que prestasse serviços diplomáticos junto a estrangeiros na corte. Com a morte do rei, a viúva Catarina de Médici resolveu casá-lo com uma bela mulher — curiosidade era saber se o casal poderia gerar filhos e como eles nasceriam. A noiva, que desmaiou ao avistar Pedro pela primeira vez, acabou se acalmando devido aos bons modos do marido e viveram em uma relação amorosa e um bom casamento, segundo conta a história.

 

A partir disto, fica mais fácil entender como a Fera é uma metáfora para uma pessoa marginalizada pela sociedade e vista como uma besta, neste caso, devido a uma condição física atípica. Quando a bruxa transforma o príncipe em Fera, ela não o condena a ser mau nem grosseiro, nem ele era nada disso antes da maldição. Ela retira dele as características físicas humanas e ainda o obriga a se mostrar como uma pessoa burra, justamente porque se Bela descobrir que na verdade a Fera é um ser inteligente e refinado, pode se afeiçoar a ele. A única coisa de terrível que a Fera possui é sua aparência e Bela é a mulher predestinada a enxergar o ser que existe além disso, o que ela de fato faz, devido a sua natureza piedosa e compreensiva.

 

Um dia, o mercador recebeu notícias de bons negócios na cidade, e resolveu partir. As duas filhas mais velhas, esperançosas em enriquecer novamente, encomendaram-lhe vestidos e futilidades, mas Bela, preocupada com o pai, pediu apenas que ele lhe trouxesse uma rosa2.

 

Quando o mercador voltava para casa, foi surpreendido por uma tempestade, e se abrigou em um castelo que avistou no caminho. Ao partir, pela manhã, avistou um jardim de rosas e, lembrando do pedido de Bela, colheu uma delas para levar consigo. Foi surpreendido, porém, pelo dono da roseira, uma Fera pavorosa, que lhe impôs uma condição para viver: deveria trazer uma de suas filhas para ficar em seu lugar.

 

Ao chegar em casa, Bela, mediante a situação resolveu se oferecer para a Fera, imaginando que esta a devoraria. Porém, em vez de a devorar, a Fera mostrou-se aos poucos como um ser sensível e amável, fazendo todas as suas vontades e tratando-a como uma princesa. Assim, apesar de achá-lo monstruoso, Bela se apegou a Fera.

 

Certa vez, Bela pediu que a Fera a deixasse visitar sua família, pedido que foi concedido, a muito contragosto, com a promessa de ela retornar em uma semana. O monstro combinou com Bela que, para voltar, bastaria colocar seu anel sobre a mesa, e magicamente retornaria.

 

Bela visitou alegremente sua família, mas as irmãs, ao vê-la feliz, rica e bem-vestida, sentiram inveja, e a envolveram para que sua visita fosse se prolongando, na intenção de Fera ficar aborrecida com sua irmã e devorá-la.

 

Bela foi protelando sua volta até ter um sonho em que via Fera morrendo. Arrependida, colocou o anel sobre a mesa e voltou imediatamente, mas encontrou Fera morrendo no jardim, pois essa não se alimentara mais temendo que Bela não retornasse.

 

Assim, Bela compreendeu que amava a Fera, que não podia mais viver sem ela, e confessou ao monstro sua resolução de aceitar o pedido de casamento. Mal pronunciou essas palavras, a Fera se transformou num lindo príncipe, pois seu amor colocara fim ao encanto que o condenara a viver sob a forma de uma fera até que uma donzela aceitasse se casar com ele. O príncipe casou com Bela e foram felizes para sempre.

 

Analisando o conto, observamos que inicialmente, a convivência com a Fera era assustadora para a jovem. Contudo, ao aprender a valorizá-la, respeitá-la e amá-la, esta se transforma num príncipe, e o pai da moça é salvo. Deste modo, a redenção do pai é a transformação da “Fera”, do animus negativo que existe no interior da mulher, em um homem que tem uma boa relação com o feminino.

 

Assim, redimir o pai é, de certo modo, redimir o feminino. A redenção do feminino ocorre quando a mulher não é nem submissa ao masculino, nem o imita. Deste modo, a redenção do feminino se dá quando a mulher passa a se valorizar e a viver de maneira espontânea, de acordo com suas necessidades e sentimentos, sendo capaz de dialogar com seu animus, não sendo, portanto, controlada por ele. “(…). Toda mulher tem uma dimensão masculina, geralmente oculta em sua psique inconsciente. Corresponde-lhe, no homem, a presença de um lado feminino que, no mais das vezes, é inconsciente e inacessível.

 

A tarefa do crescimento pessoal para cada um é tomar consciência desse lado contrassexual, valorizá-lo e exprimi-lo conscientemente, quando a situação for apropriada. Quando o lado contrassexual é aceito e valorizado, torna-se uma fonte de energia e inspiração, permitindo a união criativa dos princípios masculino e feminino no interior da pessoa, assim como o relacionamento criativo entre homem e mulher.(Leonard, 1997)

 

Antes de tudo, é necessário entender o que é a Síndrome de Estocolmo e como funcionam os relacionamentos abusivos. A chamada Síndrome de Estocolmo ganhou este nome após um famoso caso de assalto a banco na cidade de Estocolmo em que o criminoso Jan-Erik Olsson e seus reféns conviveram durante seis dias e, durante este tempo, laços afetivos foram criados entre eles. Os reféns chegaram a proteger o assaltante com o corpo para que a polícia não atirasse nele e um deles chegou mesmo a afirmar: “confio plenamente nele, viajaria por todo o mundo com eles”.

 

Olsson era um assaltante peculiar: ele queria encerrar o assalto logo após receber o resgate e apesar de estar armado e mantendo seus reféns em cativeiro, em momento nenhum os intimidou de forma violenta, agrediu verbal ou fisicamente ou fez com que tivessem medo dele. Inclusive, após sua prisão, dois dos reféns chegaram a visitá-lo. Carismático, ele inclusive chegou a se casar na prisão e teve policiais como testemunhas. Não chegou a se envolver em mais nenhum crime após isso.

 

Apesar de Olsson não demonstrar ter as características de uma pessoa violenta, na época do episódio o criminologista Nils Berejot, que ajudou a polícia sueca a lidar com o assalto, achou que não era natural que os reféns tivessem se afeiçoado a seu raptor e levantou a hipótese de que eles sofreriam de um mecanismo de defesa psicológico gerado pelo medo, em que a vítima amplifica qualquer atitude amigável de seu agressor na tentativa de se identificar com ele — e chamou esse mecanismo de defesa de Síndrome de Estocolmo. Hoje talvez seja possível afirmar que aquele homem de fato não era uma pessoa agressiva e que as vítimas talvez não estivessem mesmo com medo dele. Mas isso não significa que o transtorno psicológico não exista.

 

A dinâmica de um relacionamento abusivo exige um equilíbrio desigual de poder. A pessoa oprimida é colocada em várias situações de estresse por seu opressor: costuma ser levada a se afastar da família e dos amigos, ser impedida de sair ou trabalhar — em alguns casos não acontece um impedimento, mas a pessoa é deixada para fazer sozinha as atividades que não interessam a seu par e é levada a se sentir culpada por isso.

 

Também costuma haver controle de horários ou exigência de provas, como a obrigação de mandar mensagens, fotos ou fazer telefonemas frequentes para confirmar que ela está onde disse que estaria. A vítima de um relacionamento abusivo é vigiada todo tempo, ela costuma sentir medo das consequências de suas atitudes frequentemente e evita falar com alguém sobre o que está acontecendo. Ela vive em estado de medo, vergonha e ameaças, chegando a ser agredida fisicamente em alguns casos. Quando tenta sair desta submissão, o agressor promete mudar de comportamento e a relação entra em clima de lua de mel. Para logo em seguida o ciclo recomeçar.

 

A fato de a Fera ser um animal está relacionada a um subgênero dos contos de fadas chamado “noivos animalescos” (animal bridegrooms, em inglês), em que de fato os animais encontram sua redenção através do amor de um ser humano. O que não significa que esses seres sejam ruins. O simbolismo3 desse tipo de história alude ao lado selvagem dos seres humanos, aquele lado obscuro que todos temos dentro de nós e que sem o contato humano adequado nos leva a um estado primitivo de animalização.

 

Como conta Rodrigo Lacerda em sua introdução ao volume lançado no Brasil no ano passado pela editora Zahar, “neste tipo de narrativa, a trajetória do protagonista costuma envolver um encontro do humano com o poder ambíguo, assustador e fascinante do mundo fantástico, encontro do qual o homem ou a mulher sairá integralmente imbuído de generosidade, abertura de espírito e compreensão.”

 

Jovens protagonistas provam sua pureza e afirmam o amor sobre todas as outras forças da natureza, mostrando-se capazes de redesenhar as fronteiras entre o humano e a dimensão fantástica do mundo. (…) Por sua vez, o noivo ou a noiva animalesco de modo geral representa nosso lado selvagem, e o de nossos cônjuges — aquele lado que, mesmo quando conhecemos, não podemos controlar.

 

Grande parte dos contos de fada tem um final feliz, simbolizado pelo casamento, que segundo Estés (1994) representa a procura de um novo status, o desdobramento de uma nova camada da psique.

 

Na alquimia a união entre opostos é comumente representada pelo casamento entre figuras masculinas e femininas, o que é denominado de coniunctio. A coniunctio alquímica simboliza uma união transformadora de substâncias dessemelhantes.

 

A partir dos símbolos alquímicos, Jung vislumbra alegorias do processo de individuação, como explicitado da seguinte citação: “O lado místico da alquimia é, deixando de lado o aspecto histórico, um problema psicológico. Trata-se, ao que parece, do simbolismo concretizado (projetado) do processo de individuação. Este produz ainda hoje símbolos que têm a mais íntima relação com a alquimia. Devo remeter o leitor, no tocante a isso, a meus trabalhos anteriores que tratam dessa questão do ponto de vista psicológico, ilustrando o processo com exemplos práticos.”(Jung, 2003).

 

No conto A Bela e a Fera podemos perceber muitos paralelos com a simbologia alquímica, que Jung concebe como uma alegoria do processo de individuação. O conto tem início com a ruína do pai de Bela, uma vez que este perde toda sua fortuna num negócio malsucedido.

 

Daí a partir desse fracasso, Bela, diferentemente de suas irmãs, se compadece do pai, abdicando de sua vida para ajudá-lo, recusando de todas as propostas de casamento que lhe foram oferecidas. Suas irmãs invejam-na, pois mesmo sem dote, permanecia sendo cortejada e admirada pelos rapazes, o que não aconteciam com aquelas.

 

Nesse primeiro momento do conto, percebemos que Bela é como um ego indiferenciado, uma vez que vive num estado de simbiose com seu pai, o que pode representar, metaforicamente, um estado de caos, de inconsciência. O processo de diferenciação se dá a partir do momento em que o pai de Bela parte em viagem, em busca de reaver sua riqueza. O interessante é que antes de partir, oferece um presente cada uma das filhas e enquanto as irmãs pedem bens materiais (joia e vestido),

Bela pede apenas uma rosa.

 

O simbolismo da rosa é extremamente rico, visto que a rosa está associada aos mistérios de Isis, como também ao culto da deusa Afrodite (ou Vênus). Além, disso a rosa, como as demais flores, por terem formato circular, representam a totalidade, o Self e a busca pela perfeição através do processo de individuação.

 

Segundo Jung4 (2006), a rosa, em geral, dispostas em quatro raios, o que indica a quadratura de um círculo, representando assim a união dos opostos, simboliza a totalidade. Sobre os símbolos da totalidade, Jung estudou as mandalas das religiões orientais. “Mandala”, em sânscrito, significa círculo e designa os desenhos circulares utilizados em rituais de contemplação.

 

“A meta da contemplação dos processos representados na mandala é que o iogue perceba (interiormente) o deus, isto é, pela contemplação ele se reconhece a si mesmo como deus, retornando assim a ilusão da existência individual à totalidade universal do estado divino.”(JUNG, 2006) Edinger (2008), fala sobre o aspecto teleológico das flores, que é de atrair através da beleza e de seu símbolo como uma isca para ego na busca da perfeição através do processo de individuação.

 

“Eu penso que as flores são, primeiramente, uma referência ao aspecto erótico da energia motivadora. Nos sonhos, as flores geralmente apontam para duas ideias principais: quando uma flor única é enfatizada, com muita frequência indica uma imagem mandálica, já que flores são mandalas naturais. A outra ideia é a de que flores representam a capacidade natural de atrair. Elas são representações da beleza, uma isca. Provavelmente, do ponto de vista teleológico, é para isso que uma planta gera flores. Elas atraem criaturas que servem aos seus propósitos. Assim,consideradas psicologicamente, as flores representariam a isca de beleza que o inconsciente estende para o ego, para atraí-lo ao processo de individuação”(Edinger, 2008)

 

As flores também representam o elixir da vida, uma vez que a floração exprime o retorno ao centro, à unidade, ao estado primordial. Por isso, muitas vezes são consideradas a representação da alma, o centro espiritual:“Associadas analogamente às borboletas, tal como elas, as flores representam as almas dos mortos. […] Com efeito, muitas vezes a flor apresenta-se como figura-arqúetipo da alma, como centro espiritual.”(Chevalier, J., 1998).

 

No conto em questão, a rosa é o elemento instigador de todo o drama que se seguirá, pois é a partir de seu roubo se dará toda a transformação da personagem principal. Assim como, a mordida da maçã do jardim do Éden, o roubo da rosa é o ato transgressor que traz luz ao desconhecido, uma vez que produz consciência e promove a transformação.

 

Ao roubar a rosa de um castelo desconhecido, o pai de Bela se depara com a Fera que o condena a morte por seu ato. Porém, diante das súplicas do pobre homem, a Fera poupa-lhe a vida com a condição que uma de suas filhas fosse morar em seu castelo. Retornando ao lar, o pai entristecido conta o ocorrido, e Bela se oferece para morar com a Fera. Nesse momento, ocorre a separação da heroína com seu núcleo familiar. Vale ressaltar que o tema da separação é muito frequente nos mitos de criação, nas sagas heroicas.

 

Segundo Edinger (2008) a separação (operação separatio, na alquimia) corresponde ao ato inicial de criação, que cinde a luz das trevas. Como no mito da criação cristão, no começo havia apenas caos e a partir da intervenção divina, houve uma cisão, separando a terra do céu. Alegoricamente, essa separação corresponde ao nascimento da consciência, o nascimento do ego – o que no conto corresponde a ida da heroína ao castelo da Fera.

 

A partir do roubo da rosa, tem início a difícil missão da heroína que é viver num novo mundo e conviver com a Fera. Essa difícil missão é o anúncio da opus alquímica, o prenúncio da transformação.

 

A Fera é a representação de num animus animalesco, regredido e, até mesmo, negligenciado, pois vive só em seu castelo. O encontro de Bela e a Fera seria assim uma alegoria do contato entre ego-animus. Ao entrar em contato com Fera, uma criatura repugnante, Bela sente medo, mas com o passar do tempo é construído um vínculo entre os dois personagens. Como prova de confiança, a Fera deixa Bela visitar sua família. O retorno ao lar de Bela, representa a regressão do ego diferenciado ao inconsciente original, o que se assemelha a operação alquímica solutio.

 

“Para o alquimista, a solutio significava o retorno da matéria diferenciada ao estado original indiferenciado, prima matéria. A água era vista como útero, e entrar na água, a solutio, era retornar ao útero para renascer.”(Edinger, E. 2008)

 

Jung sugere em sua teoria uma relação simbólica entre a mãe e o inconsciente, pois, como a mãe é fonte da vida física, também o inconsciente é a fonte da vida psicológica.

 

Portanto, a mãe e o inconsciente podem ser vistos como símbolos femininos equivalentes. O impulso de retorno à mãe pode ser visto como um impulso de volta ao inconsciente. Sob certas circunstâncias, isso pode ser regressivo, levando à neurose e à psicose; doença psicológica ou morte. Em outras circunstâncias, ou seja, no processo de individuação, a regressão pode ser temporária e em prol da renovação psicológica e do renascimento simbólico (“recuar para saltar melhor”).

 

Sobre a regressão e o processo de cura, Jung diz: “Parece que o processo de cura mobiliza essas forças para alcançar os seus objetivos. É que as representações míticas, com seu simbolismo característico, atingem as profundezas da alma humana, os subterrâneos da história, aonde a razão, a vontade e a boa intenção nunca chegam.

 

Isso porque elas também provêm daquelas profundezas e falam uma linguagem, que, na verdade, a razão contemporânea não entende, mas mobilizam e põem a vibrar no íntimo do homem. A regressão que poderia nos assustar à primeira vista é, portanto, muito mais um “reculerpour mieux sauter”, um concentrar e integrar forças, que no decorrer da evolução vão constituir uma nova ordem.” (Jung, C. G. , 2007).

 

Deste modo, na visão junguiana a função do símbolo é ser um agente curativo que age como ponte para reconciliar os opostos, ou seja, uma tentativa do inconsciente de levara libido regressiva para um ato criativo, mostrando assim o caminho para a solução do conflito.

 

Assim, Jung nos fala da importância do conhecimento dos símbolos em análise, uma vez que a meta da psicoterapia não se resume a cessão dos sintomas, mas a realização plena das potencialidades a partir do processo de individuação.“[…]. Neste caso o conhecimento dos símbolos é indispensável, pois é nestes que se dá a união de conteúdos consciente e inconsciente. Da união emergem novas situação ou estados de consciência. Designei por isso a união de opostos pelo termo “função transcendente”.5

 

A meta de uma psicoterapia que não se contente apenas com a cura dos sintomas é a de conduzir a personalidade a totalidade. (Jung, 2006)Bela retorna ao lar transformada, e isso atiça a inveja de suas irmãs. Esse momento do conto representa o confronto com a sombra e aos aspectos regressivos do inconsciente, que dificultam a comunicação do ego com o Self e obstrui o processo de individuação.

 

As irmãs de Bela, ardilosamente, fazem tudo para agradá-la e para que esqueça de retornar ao castelo da Fera. Porém, Bela pressente o chamado da Fera, e ao voltar depara-se com a Fera agonizando de tristeza (operação mortificatio, na alquimia). A partir desse momento, Bela percebe o lado humano da Fera, assim como o sentimento de amor.

 

Desse modo, a heroína tem a vivência da coniunctio, a vivência dos opostos, visto que a Fera não é mais um animal repugnante, mas como um ser humano (pois tem sentimento) que desperta seu amor.

 

“De acordo com o simbolismo6 alquímico, a coniunctio é o objetivo do processo; é a entidade, a matéria, a substância que é criada pelo processo alquímico quando ele finalmente obtém sucesso em unir os opostos. É algo misterioso, transcendente, que pode ser expresso por muita imagens simbólicas. […]” (Edinger, 2008).

 

Em Jung (2003), “[…].A operação alquímica consistia essencialmente numa separação da prima matéria do assim chamado caos, no princípio ativo, isto é, a alma,e no princípio passivo, isto é, o corpo, os quais posteriormente se reunificavam sob a forma personificada da “coniunctio”, do“matrimonium chymicum”; em outras palavras a “coniunctio” era vista como uma alegoria do hierosgamos, a união ritual de Sol e Lua. Dessa união nascia o filius sapientiae, o philosophorum: O Mercurius transformado, considerado como hermafrodita, devido à forma esférica de sua completude.”(Jung, 2003).

 

Já Corso e Corso, (2006) e Gutfreind, (2010) discutem as ideias de Bruno Bettelheim referentes aos aspectos terapêuticos do conto, na medida em que a criança encontra solução e sugestões em forma simbólica para lidar com conflitos ou imagens, que estruturam seus devaneios. Mas ressaltam que, muito mais que uma forma de expressar o que se passa conosco, a força dessas histórias infantis se reflete, de certa forma, a posteriori. Quando a angústia é difusa, ao encontrar um contorno para o sofrimento, ela se configura em diferentes possibilidades de representação. Mais uma vez, há semelhanças com as ideias de Freud sobre construções em análise: o analista traduz o inconsciente em imagens acessíveis, ampliando o contato com partes mais primitivas ou ocultas.

 

A partir da vivência dos opostos, o animus animalesco, sombrio, torna-se humano. Assim, o feitiço que condenou o príncipe a viver como Fera7 é quebrado e este pede Bela em casamento.

 

O casamento é um símbolo muito recorrente nos contos de fadas e mitos que retratam a saga de heroínas. Nos mitologemas do herói há uma cisão entre inconsciente e consciente. O herói mata o monstro, representando essa cisão e, principalmente a construção do ego “herói” que se diferencia do monstro “inconsciente”. Já nos contos de heroína, diferentemente nos de herói, podemos observar que o princípio feminino faz parte do aspecto do inconsciente e, por tanto lida com ele na esfera da relação e não da cisão.

 

Daí, o casamento ser o símbolo perfeito para retratar a meta final do processo de individuação, da relação entre os opostos, como nos fala Boechat (2008),“O modelo mítico mostra sempre o mitologema do herói que mata o monstro. Este mitologema configura a estruturação da consciência a partir do inconsciente. A morte do monstro simboliza o domínio ou repressão de impulsos instintivos primitivos. Configura-se aqui a oposição instinto-cultura definida por Freud.

 

A imaturidade de Bela, seu medo da Fera, seu desejo de permanecer junto ao pai só são superados quando, pela piedade e pela sedução, retorna ao castelo da Fera, dedica-se a ela e, ao fazê-lo, quebra o encanto, surgindo o belo príncipe com quem viverá. O conto se desenvolve como processo de amadurecimento da heroína e de constituição da imagem masculina através de seus desejos. Do pai à fera, da fera ao príncipe.

 

Na maioria dos contos, o pai é indiretamente responsável pela maldição ou pelas desventuras da filha. Mas em A Bela e a Fera o pai é diretamente responsável ao arrancar de um jardim que não lhe pertence, uma rosa branca, despertando a Fera. Há no roubo da flor a simbolização do desejo e do medo inconsciente das meninas de serem raptadas ou violentadas.

 

A figura masculina se divide: há o pai-bom e o homem-fera, divisão que obriga Bela a viver com o segundo para salvar o primeiro. Contudo, desejando rever o pai doente, Bela deixa que Fera, abandonada, também adoeça (de desejo).

 

Eis a versão repressiva de Eros e Psique: dois seres, enclausurados num cubículo e em suas vestes, sem corpo e sem rosto, enlaçados pelas convenções. Encontro sem contato (as bocas não se beijam, beijam trapos) e sem intimidade, pois, no cubículo fechado e sob os panos que cobrem seus corpos e rostos, se descobre a presença da sociedade inteira, vigiando e controlando o pobre par.

 

Será Freud o primeiro a captar que Eros e Psique não são dois entes separados perpetuamente buscando um ao outro, mas que são um só e mesmo ser: Eros (o desejo) habita Psique (a alma). Como no poema de Fernando Pessoa, em que o príncipe destemido busca a princesa encantada para descobrir que ele era ela. Desejo de indivisão e de fusão perpétua (impossível), o laço que enlaça em terno e fundo abraço, é a sexualidade humana, perpetuamente reprimida.

 

Há uma dinâmica de poder: Bela pode fazer o que quiser dentro dos limites do castelo e permanece sendo prisioneira da Fera, estando à mercê do humor e das decisões da criatura. E é quando ocorre este momento no filme: a Fera, esperançosa, pergunta à Bela se ela acha que conseguiria ser feliz vivendo no castelo. Bela responde que não sabe, por que como ela poderia ser feliz em um lugar onde não é livre? Se dando conta disso, a Fera então a liberta.

 

As crianças devem ser capazes de acreditar que é possível atingir uma forma de existência mais alta, se dominam os graus de desenvolvimento que isso requer. As histórias contando que isso, além de ser possível, é o provável, têm uma tremenda atração para as crianças, porque combatem o temor sempre presente de que não conseguirão fazer essa transição ou de que perderão muito no processo.

 

No romance original a ideia de Madame de Villeneuve era mostrar para as meninas das quais era preceptora que os casamentos de aparências não tinham valor verdadeiro: o dinheiro pode acabar e a beleza é superficial. O que sobra no final é o caráter.

 

E se A Bela e Fera deixa uma mensagem8, seria esta: é sobre mostrar as provações pelas quais devemos passar se quisermos nos tornar seres humanos melhores e sobre a importância de se enxergar além das aparências — afinal, o preconceito marginaliza as pessoas e a falta de contato humano pode gerar verdadeiros monstros.

 

No conto de fadas existe um perigo, mas ele é superado com êxito. Não há morte sem destruição, mas uma melhor integração simbolizada pela vitória sobre o inimigo ou competidor, e pela felicidade — e ela é recompensa do herói no final do conto. Para consegui-la, passa por experiências de crescimento comparáveis às experiências de que a criança necessita quando se desenvolve para a maturidade. Isso dá coragem à criança para que não desanime com as dificuldades que encontra na luta para chegar a ser ela mesma.

 

 

Referências

AME RENO, Daniela Acuchi, Mitos em “A Bela e a Fera” e Ince Puno A Time. Cadernos de Pós-Graduação em Letras. v.19.n2. p.91-103.

ARPIN, Dalila. Parejas célebres: lazos inconscientes. Buenos Aires: Grama, 2018.

BEAUMONT, Jeanne-Marie Le Prince de. A Bela e a Fera. In: Fábulas Encantadas. São Paulo:

Abril S.A. Cultural e Industrial, 1982.

BEAUVOIR, S. de. 1949.O segundo sexo: Vol. 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

Disponível em:

58352009000200011> Acesso em 18.6.2024.

BETTELHEIM, B. (1980). A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra

BOECHAT, W. A Mitopoese da Psique-Mito e Individuação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

CASTRO, M. da G. K. Psicoterapia e grupo com crianças mediadas por contos. In. Castro, M. da G. K., Stürmer, A. E Col. (2009). Crianças e adolescentes em psicoterapia: a abordagem psicanalítica. Porto Alegre: Artmed.

CHEVALIER, J., GLEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

CORSO, D. L. e CORSO, M. (2006). Fadas no Divã: Psicanalise nas Histórias Infantis. Porto Alegre: Artmed

DIECKMANN, H. Contos de Fada Vividos. São Paulo: Edições Paulinas, 1986

EDINGER, E. O Mistério da Coniunctio. Imagem Alquímica da Individuação. São Paulo: Paulus, 2008.

EDINGER, E. F. Anatomia da psique: O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo, Cultrix: 2006.

ESTÉS, C. P. Mulheres que Correm com os Lobos – Mitos e Histórias do Arquétipo da Mulher Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

Instituto Junguiano. O Conto A Bela e a Fera: da simbologia alquímica ao processo de individuação.

Disponível em: http://institutojunguianorj.org.br/o-conto-a-bela-e-a-fera-da-simbologia-alquimica-ao-processo-de-individuacao/ Acesso em 19.6.2024.

FREUD, S. (1996). A ocorrência, em sonhos, de material oriundo de contos de fadas. In:

Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, (v. 12). Rio de Janeiro: Imago (Texto original publicado em 1913).

GUTFREIND, C. (2010). O Terapeuta e o Lobo. Rio de Janeiro: Artes e Ofícios.

JACOBI, J. Complexo Arquétipo Símbolo na Psicologia de C. G. Jung. São Paulo: Cultrix, 1995.

JUNG, C. G. A Prática da Psicoterapia. Obras Completas vol. XVI – Petrópolis: Vozes,2007.

______ Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Obras Completas vol. IX/1 –Petrópolis: Vozes, 2006.

______ Estudos Alquímicos. Obras Completas vol. XIII– Petrópolis: Vozes, 2003.

______ Psicologia e Alquimia. Obras Completas vol. XII – Petrópolis: Vozes, 1991.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

JUNG, E. Animus e Anima. São Paulo: Cultrix, 2005.

KAWAI, H. A Psique Japonesa – Grandes temas dos contos de fadas japoneses. São Paulo: Paulus, 2007.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. (1969-1970) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: Mais, ainda. (1972-1973) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1982.

LEONARD, L. S. A Mulher Ferida: em Busca de um Relacionamento Responsável entre Homem e Mulher. São Paulo: Summus, 1997.

LENI, Chiara maria; BITTENCOURT, Maria Elisa Fisberta C. A Projeção do Arquétipo do Animus e o Conto a Bela e a Fera. Disponível em: https://tuberossagrado/uploads/2008/anais/mostra_psicologia_2019/comunicação_oral/A%20PROJECAO%20DO%20ARQUETIPO%20DO%20ANIMUS%20E%20O%20CONTO%20A%20BELA%20E%20A%20FERA.pdf Acesso em 19.6.2024.

NEUMANN, E. História da Origem da Consciência. 10ª ed. Cultrix. São Paulo: 1995.

NAVEAU, Pierre. Encontro: do impossível ao contingente. In: NAVEAU, Pierre. O que do encontro se escreve. Belo Horizonte: EBP, 2017. p. 247-278.

ROSE, A. T., TIEITEBAUM, L. K. C., MOREIRA, L. M., SOUZA, N., HENTSCKE, A., VALENTINI, I., HOFFMEISTER, L. T., MENEGHETTI, B. M., MEJOLARO, C., POZADA, R. e MENTZ, L. O. (2013). Contando e Recontando. Revista do IEPP: Psicoterapia Psicanalítica, 15, 72-82.

ROUSSEAU, J. J. Emílio ou Da Educação. Tradução Roberto Leal Ferreira. Martins Fontes. 2 ed. São Paulo. Martins Fontes. 1999.

STEARNS, P. N. De História da Sexualidade. São Paulo: Contexto. 2010.

SIHE, Karen; DOTTO, Fernanda Real. De A Bela Adormecida à Malévola: O Papel da Mulher na Sociedade. Psicanálise & Barroco em revista.

v.15, n.01. Julho de 2017.

RATAR, M. Contos de fadas – edição comentada e ilustrada. São Paulo: Jorge Zahar, 2004.

VON FRANZ, M-L. Reflexos da Alma – Projeção e Recolhimento Interior na Psicologia de C. G. Jung. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1992.

______ O Feminino nos Contos de Fadas. Petrópolis: Vozes, 1995.

______ A Interpretação dos Contos de Fada. São Paulo: Paulus, 1990.

WOOLGER, J. B. e WOOLGER, R. J. A Deusa Interior: Um Guia sobre os Eternos Mitos Femininos que Moldam nossas Vidas. São Paulo: Cultrix, 1987.

1O fato de não ter mãe simboliza uma fraqueza e incerteza sobre a feminilidade da heroína, o que a deixa suscetível à dominação dos conceitos masculinos. Os valores femininos passados pela mãe são rejeitados, ao mesmo tempo que os valores masculinos são supervalorizados. O conto retrata, então, um embate da mulher com seu lado masculino, pois este se desenvolve a partir da experiência com o pai pessoal.

2A rosa que Bela pede ao pai pode ser um pedido de ajuda inconsciente. Sua bondade e desejo de se livrar desses conceitos que já não lhe trazem riquezas estão simbolizados nesta encomenda. O que ela não sabe, ao pedir a rosa, é que está a ponto de pôr em perigo a vida do pai e o relacionamento ideal existente entre os dois. É como se ela desejasse ser salva de um amor que a mantém virtuosa, mas em uma atitude irreal.

3O simbolismo do conto elucida a ligação afetiva de uma jovem com o pai, que numa intenção inconsciente o coloca em perigo, com a função de “ser salva de um amor que a mantém virtuosa, mas em uma atitude irreal. Ao aprender a amar a Fera, a Bela desperta para o poder do amor humano disfarçado na sua forma animal (e portanto imperfeita), mas também genuinamente erótica. Desta maneira liberta-se a si, e a imagem que faz do homem, das forças repressivas que a envolvem, tomando a consciência da sua capacidade de confiar no amor como um sentimento onde a natureza e espírito estão unidos, no mais elevado sentido destas palavras.”

4A análise junguiana se traduz em ser um procedimento dialético, um diálogo entre duas pessoas, onde uma vai tentar entender o que se passa no inconsciente da outra. Assim, Jung considera a anima e o animus como figuras arquetípicas da psiquê. A anima se refere a características femininas na psique do homem, e o animus a características masculinas na psique da mulher. A anima e o animus são constelados, primordialmente, nos relacionamentos. Uma das formas de se ampliar a compreensão do arquétipo do animus na psicoterapia analítica é através de mitos e contos de fada. Os contos são a expressão mais pura dos processos psíquicos do inconsciente coletivo, pois eles representam os arquétipos na sua forma mais simples, plena e concisa. O aspecto animal e primitivo do animus pode aparecer claramente no conto A Bela e a Fera. O presente trabalho visa discutir um caso de projeção do arquétipo do animus no relacionamento amoroso, assim como ampliar a compreensão do mesmo a partir do conto A Bela e a Fera

5A redenção da Fera é feita por meio do amor. Ao sentir saudades da Fera, ela quebra a sua simbiose com o pai ou, então, a Fera morre. O aspecto animal, hostil e assustador se vão e ela pode ver realmente quem é seu marido. Com isso, seu lado humano pode se manifestar. Esse conto, então, nos fala da iniciação feminina no campo do amor carnal. O encontro com sua feminilidade mais profunda, através da Fera que existe dentro dela.

6Segundo a mitologia grega, as primeiras rosas vermelhas brotaram do sangue de Adônis, o amado de Afrodite, tornando-se assim (a rosa) o símbolo do renascimento e do amor. Ainda, segundo o Dicionário de símbolos, Chevalier e Gheerbrant (2003, 3) afirmam: “Por sua relação com o sangue derramado, a rosa parece ser frequentemente o símbolo de um renascimento místico”.Na análise do conto original, a rosa é um elemento fundamental do conto a “Bela e a Fera”, pois, ao ser roubada, contribui para o desenrolar da trama, sendo um marcador importante para o antagonista da história.

7Fera reflete amor humano: erótico e imperfeito. Para deixar o pai, ela precisou aceitar o desejo erótico – que estava encoberto em uma fantasia incestuosa simbólica – para conhecer o homem-animal e descobrir suas verdadeiras reações como mulher. O conviver com a Fera, Bela percebe que ele é sensível e realiza todas as suas vontades a despeito de sua aparência. A menina se afeiçoa a ele, que a pede em casamento várias vezes, sendo recusado em todas elas. A imagem de um masculino diferente do pai passa de hostil a gentil.

8Em verdade, Bela apropria-se de heroína quando sua atitude expressa melhor seu comportamento, aceitando o chamado à aventura e tornando-se um símbolo da alma em transformação, da jornada rumo ao crescimento e à aprendizagem. Uma mulher que conseguiu vencer suas limitações e pode voltar à vida comum omo um novo ser, com um novo entendimento.

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 19/08/2024
Código do texto: T8132313
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.