Alguém para passear-lhe o cachorro
Alguém para passear-lhe o cachorro. Veja-se a beleza dessa construção gramatical. Alguém que lhe passeie o cachorro. Essa é outra forma de dizer a mesma coisa. Você achou estranho. Pois bem, não ache. Essas belas construções gramaticais existem e, além de corretas, são eruditas. Não são comuns no Brasil, mas em Portugal. Para ser mais preciso, no português de Lisboa, já que Portugal – dizem os estudiosos –, a despeito de fisicamente pequenino, tem muito mais dialetos do que o Brasil.
Sintaxe. Regência. Colocação pronominal. No Brasil e sem desacordo com a norma-padrão, dir-se-ia: “Alguém para lhe passear o cachorro.” Ou, ainda, como é o dizer mais corrente: “Alguém para passear com o cachorro dele” ou, conforme o caso, "Alguém para pasear com o cachorro dela." Veja-se que, no português do Brasil, consideramos correta a atração do pronome “lhe” pela preposição “para” (na verdade, qualquer preposição), de forma que, em vez de ficar enclítico, fica proclítico: “Alguém para lhe passear o cachorro.” Em vez de: “Alguém para passear-lhe o cachorro.”
No Brasil, dificilmente se diz “passear o”. Diz-se “passear com”. Menos, ainda, se diria “passear-lhe o”, que é forma erudita e lindíssima. Esse “lhe” aí – da construção “passear-lhe o”, ou, ainda, “lhe passear o” – é adjunto adnominal e, de forma muito bonita, substitui “com o seu”, "dele", "dela", conforme o caso. Esse emprego do adjunto adnominal, usando o pronome "lhe" em lugar do pronome possessivo "seu", "sua", ou de contrações como "dele", "dela", e assim por diante, é pouquíssimo conhecido no Brasil. É, contudo, muito lindo e erudito. Com efeito, existe diferença entre "passear o" e "passear com". Isso, porém, é outra história.
“Alguém para passear-lhe o cachorro” foi uma frase que, num dia qualquer de 2020 ou 2021, pincei de uma conversa normal entre amigos, pelo bate-papo do Facebook (se alguém preferir o inglês, inbox), conversa sobre a pandemia. Na realidade, uma conversa entre mim e a advogada, poetisa e romancista portuguesa Sandra Sofia Brandão Neves. Sandra Neves, como é literariamente conhecida, é autora dos romances Homicídio na Câmara Municipal e O Neto do Morgado Velho, obras de fôlego da literatura portuguesa.
Um registro. Meu filho caçula, Samuel dos Santos Monteiro, quando criança, ao conversar normalmente, dizia, por exemplo: “Pai, me compra um sorvete!” Que primor de construção gramatical! Ele, sem saber, substituía, linda e corretamente, a locução “para mim” pelo pronome “me”, além de empregar o imperativo afirmativo “compra”, da segunda pessoa do singular de “comprar”. Eu achava o máximo o linguajar dele. O Samuel não dizia, por exemplo, “está saindo sangue”, mas “está sangrando”. Cresceu, mudou. Não sei por quê.