*O Piriri*
Introito:
“Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio / Pele e osso simplesmente, quase sem recheio. [...]”. Pincei da linda canção Partido Alto, do Chico Buarque, parte da letra, para que sirva de introito deste conto/autorretrato do Eu Menino que – pelo passar das dificuldades financeiras da paupérrima família – era a cara do personagem da letra do Chico. Havia todavia, duas diferenças: não era feio (a Mamãe me achava lindo... e Mamãe não era coruja, tá? Humpf!) e nem era um desdentado. Afora isso, quase em tudo se encaixava o Eu Menino: era fraco, pele e osso simplesmente, quase sem recheio [...] e ‘porraí’ vai!
A fome, sem graça, grassava feia, fazendo a pele quase se colar aos ossos, devido à falta da massa muscular – daí, “o pele e osso”! Uma enorme barriga destoava das demais partes do corpo. A enormidade se explica por ser um Zoo Hospedeiro de variadas verminoses, solitária e lombrigas.
A falta de uma salutar alimentação, “obrigava-me – e aos demais – a comer de um tudo” como antanho diziam. E esse “de um tudo” significava: o que tivesse para ser comido, comido teria que ser, sem a frescura de ser escolhido – tipo assim: -Ah!... eu não gosto disso não! – como diziam, e dizem, os abastados!
O nosso paupérrimo bairro não possuía nenhuma obra de saneamento básico, ou seja: redes de esgotos (o “banheiro” era no matagal, local em que os porcos promoviam a limpeza, ao mesmo tempo em que se banqueteavam) e nem água encanada. Terminado o serviço, apanhava o papel higiênico – na realidade, um sabugo de milho ou um maço de folhas verdes, por serem as mais macias – para “limpar o cano de descargas”! Às vezes, pegava-se um monte de folhas de urtiga. Desnecessário será descrever o sofrimento! Convém dizer que tudo isso facilitava a contaminação das variadas verminoses hospedeiras do Zoo Barrigão.
Sapatos? Não os usava por não os ter. Então, o ato de se pisar no solo tão contaminado e o nadar nas águas do já poluidíssimo Rio Todos os Santos, se tornaram fatores preponderantes, para que viesse a contrair as verminoses hospedeiras do Zoo Barrigão do Eu Menino. E quando o insaciável e famélico Leão Estomacal rosnava, o “de um tudo” tinha que se virar para saciá-lo. Tudo isso facilitava o aparecimento das dores de barriga e o dolorido Piriri!
Parte I:
Os tempos passam! Passam, também, as prementes dificuldades vividas pelo “cara fraco desdentado e (Bonito, sob a ótica da Mamãe, viu?), pele e osso [...] sem recheio”. A barriga, agora, perdera o superlativo, tornando-se o diminutivo, ou seja, não é mais o Zoo Barrigão. O “de um tudo” é, agora, mais selecionável, recebendo do famélico leão estomacal os agradecimentos. Em síntese, devo dizer: o Piriri deu uma enorme trégua – raramente aparecia!
Já adulto – então casado, sendo pai de duas lindas filhas do meu desfeito casamento – fui acometido de fortes “dores de barriguinha”, acompanhadas pelo – já de há muito esquecido – Piriri. E ele chegou – talvez com sentidas saudades do Eu Menino do Zoo Barrigão – “matando a pau Nicolau”!
Estava dentro do carro me dirigindo para casa, quando o danado deu sinal de que não daria tempo de, em casa, chegar. Tranquei o mais que pude o “botão de descarga” e, desesperadamente, acelerei o carro. Tinha que chegar em casa em tempo de não correr o risco de riscar a cueca! O suor, em bicas, escorria pela fria testa. Enfim, chego em casa. Havia, todavia, dois lances de escadas a serem vencidos. Ao fim do primeiro lance gritei para a esposa:
-Benhêêê! Abra a porta correndo! – gritava em alto e bom som! Para o meu ávido alívio sou ouvido. Ouço a porta se abrir. Então – e voando a mil por hora – adentro a sala numa velocidade digna de um Avião Concorde. A distância entre a sala de visitas e o banheiro salvador nunca me parecera tão grande. O Cinto de Guarnições – com a respectiva arma que portava – ficou jogado ao chão da sala e recolhidos pela esposa desesperada pelo inusitado acontecimento.
Enfim, chego ao banheiro! As vestes já estavam à altura do joelho. Noto que o vaso estava com a tampa arriada. Na pressa – e fazendo uso de excessiva força – enfio a mão na tampa, abro o vaso e sem ver, mando ver. Confesso que deveria ter visto para evitar o vexame. Ao levantar abruptamente a tampa do vaso, ela bateu na parede e voltou no exato momento em que eu – feliz da vida – me assentava enquanto “destrancava o trancado registro”. Assentei-me na própria tampa e “mandei ver” sem antes ter visto: mas deveria! O material que estava dentro da barriguinha saiu com a velocidade do Avião Concorde e se espalhou por todas as beiradas do vaso, pelo chão e minhas vestes. Levantei-me, abri o vaso e voltei a assentar-me, para dar fim ao que havia iniciado.
Com uma “cara de cachorro que cai do caminhão de mudanças de pobre”, volvo meu olhar para a porta onde se encontravam as duas filhas e a Mãe tentando conter o riso sem, contudo, conseguirem ao me ver todo cagado e assentado em cima daquele fétido aguaceiro.
Do vaso me levanto, retiro a roupa e me dirijo ao box para tomar um banho, higienizar-me, enquanto – entre risos – vejo a Mãe e filhas na labuta da limpeza de toda a sujeira que havia provocado. Saio do banheiro, me sirvo de um roupão que me era oferecido, enquanto a esposa me pergunta:
- Onde você arranjou esse Piriri Voador? – entre risos indaga-me!
Devo abrir um parêntese pois, necessário se faz! Já conhecia o Piriri de priscas eras, mas não sabia que ele tinha nome e sobrenome, ou seja: Piriri Voador. Em princípio julgava que o nome Piriri fosse um regionalismo oriundo da minha querida Teófilo Otoni – minha cidade natal. Todavia, hoje, constato que não é um regionalismo. O Piriri é nacional e genuinamente brasileiro com direitos explicativos pelo didático The Good Doctor Google, definindo-o como sendo: Diarreia, Afitamento, Afito, Borra, Caganeira, Câmaras (Ops! Não é que faz sentido? Nas Câmaras, os Vereadores e Deputados somente fazem Cagadas.); Carreirinha, Caseira, Corredeira, Corrução (Não deveria dizer, mas não consigo calar-me e digo: Corrução se parece, em muito, ser parente da corrupção – coisa comum nas Câmaras, e em todos os Três Poderes desta nossa cagada nação brasileira), Destempero, Ligeira [...] e ‘porraí’ vai!
Epílogo:
Aos meus fiéis amigos e diletas amigas que a mim honram com suas visitas à minha Escrivaninha, bem como – com as suas, bem recebidas e sapientes críticas literárias ao nosso trabalho – apresento-lhes o Autorretrato de “um cara fraco, desdentado e feio (Mamãe me achava lindo, viram? E a Mamãe não era coruja, tá? Humpf!) Pele e osso simplesmente, quase sem recheio” [...]: o Eu Menino!
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Imagem: Google