DESABAFO DE UM PAI COM ALZHEIMER
"Já não sei mais quem é você. Vejo chegando sempre e querendo ficar um tempo comigo, e por mais que me esforce não consigo te reconhecer. Percebo que isso te deixa triste, desanimado até, mas não ao ponto de não querer voltar mais. Não mesmo, espero. Confesso que fico bem triste com a minha atitude. Apesar de realmente não saber quem é você, algo dentro de mim diz que é alguém importante pra mim, que fez parte da minha vida de um jeito especial. Mas a minha cabeça ficou confusa, o tempo foi embaralhando as lembranças de jeito que não consigo arrumar mais. Não sei por que isso acontece com a gente. Qual motivo que faz ir apagando pedaços das nossas lembranças, uma atrás da outra, sem parar mais. Mas vou te confessar uma coisa: encontrei um jeito de enganar o que acontece comigo, descobri isso enquanto dormia nessa noite, veio na forma de sonho, acredita? Quando você chega e dá aquela angústia por não te reconhecer como gostaria, respiro fundo e coloco seu cheiro pra dentro de mim, inteiro dentro de mim. Esse cheiro então se propaga pelos quatro cantos da minha alma, impregnado-a de você, só de você e de nada mais. Isso é de tal forma intenso e verdadeiro que a minha alma deixa de ser minha e passa a ser nossa - minha e sua. Você pode achar que fiquei velho gagá, que não tenho mais o que inventar, não importa. Pode pensar o que bem quiser. O que vale é que desse jeito consigo reconhecer você, sentir você, me ligar a você de novo, sabia? E assim posso sentir toda sua atenção, todo seu carinho, todo seu calor de uma maneira bem forte, bem gostosa. Sentimentos que tornam esse meu final de caminhada menos árido, menos solitário, menos triste. Obrigado por vir sempre me ver, seja você quem for".