Um novo dia

Um novo dia

Hoje acordei como acordo quase todos os dias. Abro o notebook no canto da sala de aula. Estou sozinho. Fiz um chá mais cedo, está esfriando, mas vou bebericando. Notícias; sim, o G1, o Guardian; o que acontece no mundo? Lá fora — vejo lá fora pela vidraça grande ao meu lado —, o sol dá as caras de um jeito belo, caloroso, que nos enche de energia. Escrevo qualquer coisa no meu livro de bagunças. Um homem faz gestos e grita numa oficina que tem aqui na frente, do lado de um bar chamado “Lambari”. Os homens sempre indelicados. Passo a comparar os homens às mulheres; elas tão graciosas e silenciosas, seja lá no que for. Notícias, sim. Nenhuma importante. Ou se forem importantes me passam despercebidas. Lembro então que sou bem sozinho; ninguém deve pensar em mim neste momento. Ontem, enquanto caminhava, — Livre como o engraçado Macuco —, vi uma garota belíssima, que até desconfiei de sua beleza, pois passamos um pelo outro e eu tive a delicadeza de não lhe meter os olhos pela segunda vez. Mas que bela figura! Imaginei: E se caso eu achasse uma menina assim, e me encontrasse com ela em hora marcada, e desse um beijo e pegasse sua mão para caminharmos juntos. E se? E se? Ora, tais pensamentos só me fizeram recordar dos amores passados, de quando eu tinha um alguém. Rio de tudo isso; o que eu queria mesmo era caminhar, sempre sozinho como estou agora, só com minha música nos fones e meus pensamentos. Lembro de ter, como praxe, murmurado per me stesso alcune parole e frasi in italiano. Ho incontrato la mia insegnante di italiano, da quando studiavo questo bel linguaggio. Ela me parece bem sozinha. Mas sua solidão não é escrita, quem sabe, em nenhum poema, em nenhum diário. Quem sabe se acostumou? Quem sabe derrama todo seu amor e toda sua paixão adolescente, mesmo sendo adulta, em seus alunos e em sua amada calma em ensinar. Talvez guarde, como eu, um retrato de um amor que só perdura no espectro platônico. Alguém que lhe beijou as faces, há muito tempo, e que lhe fez pela primeira e última vez ruborizar-se; e tais imagens me enchem o peito de lágrimas, mas lágrimas belas, queridas, doces, que ficam sempre guardadas. Sigo com meu dia, esperando a aluna das dez horas. Sinto-me bem nesta manhã, e quero que a felicidade dure até o anoitecer. Ser professor não é fácil, sim, doa-se mais do que se recebe. Mas tudo bem, eis o que resultou de meus estudos e esforços, mesmo que tenha me entregue mais à poesia, que ainda não me fortalece financeiramente. E assim vou indo, dia a dia, passando por estas manhãs, tardes e noites sem ser outro que não eu; para uns um estranho, um excêntrico; para outros sei lá o que eu possa representar, mas um eu meio estranho inclusive para mim mesmo. Com alguns sonhos meio quebrados como um espelho caro que o dono descobriu certa rachadura. Um eterno adolescente que não entende, direito, as falas e as burocracias da sociedade. Um rapaz que espera algo que nem ele sabe direito o que é; mas que está lá, imaginamos, a lhe esperar. Rabisco a memória de um dia e divago um pouco, quem sabe por uma terapia toda minha, que com este copo de chá vermelho há de manterem-me em um equilíbrio natural e sistêmico. O mistério de tudo enevoado pela tranquilidade do cotidiano. Ah, e se tivesse um alguém? E se a vida fosse diferente do que é... sei lá, só sei que o que tenho é este chá, esta escola; a aluna que virá às dez horas, e o dia todo pela frente.

Pasquali
Enviado por Pasquali em 15/08/2024
Reeditado em 15/08/2024
Código do texto: T8129363
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