O ÚLTIMO BEIJO
Tantos anos juntos, tempo de sobra pra tudo. Pra descobrir o cheiro do outro, a pele do outro, a alma do outro, o respirar do outro. Pois foi justamente com esse respirar que ele dormia. O respirar dela, por vezes mais apurado, mais torneado, mais cadenciado, é que lhe respaldava o sono. Perdeu a conta das vezes em que acordava só pra apreciar aquele respirar solene, macio, decidido. Então voltava a dormir, feliz e amparado por aquele som orquestrado, que se propagava por todo quarto numa ressonância linda, única, absoluta. E assim se fez por noites e noites. Então, novamente, despertou só pra ter o prazer de escutar o respirar da companheira. E lá ficou ele, quieto, curtindo sua amada respirando, respirando, respirando... Quando, num repente, o respirar cessou. Calma, talvez tivesse apenas diminuído de intensidade. Calma, talvez seus próprios ouvidos tivessem falhado na escuta. Talvez, talvez, talvez... Mas o respirar se manteve inerte, travado, numa pausa que teimava em deixar de marcar presença. Então o silêncio se perpetuou por minutos, horas, quantas sofridas horas foram. Aquele silêncio fez berrar que ela foi embora, de vez, pra sempre. Nunca mais teria seus sonos aninhados por aquele respirar, por aquele lindo e eterno respirar. Nunca mais. Então fez o que tinha que ser feito. Foi até o seu rosto e lhe deu o beijo de despedida, recebido numa pele gelada, mais gelada do que todo frio do universo.