A ÚLTIMA VIAGEM

 

     Era um tempo que a memória mal alcança, um tempo em que o mundo era grande e cheio de mistérios, onde cada detalhe parecia carregado de significados que hoje parecem tão distantes. Recordo, com uma clareza quase palpável, o que talvez seja meu mais antigo lampejo de lembrança, uma cena singela que, ao longo dos anos, se cristalizou em mim como a marca de uma perda irreparável.

     Eu era apenas um menino, de olhos grandes e curiosos, sempre ávido por explorar o mundo ao meu redor. Aquele dia era especial. Estávamos de mudança, minha família e eu, para um novo lar, um novo começo. Tudo era novidade, e a embarcação onde nos encontrávamos, uma geleira robusta e barulhenta, se tornava para mim uma imensa terra de aventuras. Eu corria pelo convés, fascinado pela vastidão do rio que se estendia em todas as direções, suas águas barrentas parecendo um mar sem fim para o meu olhar infantil.

     Naquele dia, levava comigo meu companheiro mais fiel: um pequeno carrinho de madeira, gasto pelo tempo e pelas inúmeras aventuras que compartilháramos. O carrinho, com suas rodas que rangiam de tanto rodar, era minha mais preciosa posse. Segurava-o firme, guiando-o por cada tábua do convés, imaginando-o desbravando mundos distantes.

     Foi então que aconteceu. Num momento de descuido, a embarcação balançou mais forte, e o carrinho, como que dotado de vida própria, escapou das minhas mãos. Vi-o deslizar, quase em câmera lenta, rumo à borda da embarcação. Corri atrás dele, mas era tarde demais. Ele caiu, e meu coração pareceu cair junto com ele. O barulho das rodas batendo contra a madeira foi substituído pelo som oco de sua queda na água. Corri até a borda, meus olhos, arregalados, fixos no ponto onde ele desaparecera. Tudo que restava era a correnteza levando meu amigo de tantas brincadeiras.

     Eu fiquei ali, paralisado, sentindo um vazio que não sabia explicar. A perda daquele carrinho, um simples brinquedo, foi minha primeira experiência de despedida, a primeira vez que a vida me mostrou, ainda que de forma suave, que certas coisas, uma vez perdidas, não voltam. Meus pais, ocupados com a mudança, talvez nem tenham notado meu silêncio repentino, mas para mim, aquele momento significava o fim de uma era.

     Desde então, muitas mudanças vieram, muitas despedidas, mas aquela, a primeira, nunca saiu da minha memória. Talvez porque, para um menino tão pequeno, aquele carrinho era mais do que madeira e rodas. Ele era um companheiro, um amigo leal, e sua perda, no meio de uma travessia rumo ao desconhecido, marcou para sempre a minha infância.

     Aquela cena, de um menino de olhos marejados, fixos nas águas turvas que levavam seu carrinho, é a lembrança que sempre retorna, toda vez que a vida me pede para dizer adeus. E assim, o rio e o carrinho, em sua última viagem, permanecem como símbolos de um tempo que ficou para trás, mas que jamais foi esquecido.

 

Melgaço, Pará, Brasil, 13 de agosto de 2024.
Composto por Jaime Adilton Marques de Araújo
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