O senhor José Domingos

É incrível o sentimento da saudade. Às vezes, temos essa dor de não ver mais até em relação a pessoas que nunca vimos. Falo de José Domingos Affonso e, com um misto de tristeza e alegria, registro aqui um pouco de sua memória, chegada aos meus ouvidos pela voz de minha velha e carinhosa mãe. Ela se lembra do pai, fala dele com ternura e acentua mesmo que teve um pai generoso, sem ambições, amigo dos filhos, dos parentes, dos vizinhos. Um amor de pessoa! É assim que ficou na sua história o José Domingos, que deixou o mundo físico há mais de 70 anos numa época em que pessoas mais humildes tinham dificuldade para se fotografar e deixar nos arquivos familiares imagens em profusão.

Tenho apenas uma foto de meu avô materno. Dessas três por quatro. Não a busco agora em uma caixa desorganizada de memórias, mas o que lembro é suficiente para ver um homem de uns 50 anos, de cabelo cortado à escovinha... É possível que a foto antecedesse pouco o período final de vida, que se deu na ala mais humilde da Santa Casa, em Juiz de Fora, numa época em que a medicina tinha menos recursos para preservar a vida e parcos também eram os recursos da família. Minha mãe, menina à época, se recorda das visitas e do sofrimento do velho Pedreira – assim ele era conhecido – e das indeléveis marcas que a vida e a doença fizeram na face e no corpo daquele homem, que completou pouco mais de meio século de vida.

Mas seu José marcou muito os corações. Ele era feirante, comerciava frangos e outros víveres e, também, passava de casa em casa vendendo brevidades. Era simples, era amoroso, era um homem para quem o futuro era o hoje. Certamente, não se preocupou com o futuro dos filhos, naquele sentido de provê-los de patrimônio. Mas Deus o recompensou, pois sua descendência ascendeu o suficiente para ter uma vida materialmente confortável. Uma dádiva!

Mamãe conta que a casa do Domingos estava sempre aberta aos parentes, que ele fazia questão de receber com saborosos pratos conquistados com a vida difícil. E não faltavam visitas! Mamãe conta também que Domingos presenteava com frangos e doces os vizinhos ou mesmo alguma pessoa que não pudesse pagar. Era um socialista... Vovó Rita, mais pragmática, costumava reclamar: – Ah! José, você presenteia demais... Parece que gosta mais de doar do que de vender.

Certa feita, minha mãe, uma menina de pouco mais de 12 anos, acompanhava o pai para a feira e levava uma cesta de ovos. Um homem – talvez meio ébrio – surrupiou alguns ovos e caminhou célere sem que José Domingos visse. Minha mãe fez a denúncia, mas meu avô, de imediato, contemporizou: – Deixa, minha filha. Importante é que ele não te machucou. Mais tem Deus pra dar que o diabo para carregar. – E seguiram em frente para a faina de vender...

José Domingos não gostava que suas meninas trabalhassem nas casas de outras pessoas. Não era orgulho, vaidade! Era amor por suas preciosidades. Mas, certa feita, permitiu que minha mãe tomasse conta de um menininho, o Walter, somente porque dona Alda, uma boa pessoa, insistiu muito com ele. E minha mãe gostou daquele menino, e do nome do menino, tanto é que, alguns anos depois, batizou com aquele nome o seu primeiro filho, este que ora reverencia o avô.

Outros episódios, certamente parecidos, estão bem guardados no baú de lembranças de minha mãe. Quem sabe, outro dia, vasculhando a caixa de retratos, eu me depare de novo com a foto de José Domingos Affonso e seja espetado novamente pela lança, também terna e doce da saudade, e caminhe pela estrada de escritos que insistem em me procurar, quando eu menos os espero...