Sentido de viver: 1ª parte.
Acordei hoje e me lembrei: ainda estou vivo. Uma brisa suave entrava pela única janela da casa. Olhei pela janela e o céu estava azul. Escutei o som de asas dos pombos que há nesta rua. Existem tantos pombinhos que pousam no asfalto à procura de comida nesta rua. E há também tantos gatinhos, famintos, que buscam algum pedaço de comida para não morrerem de fome. Eu tenho tanta pena deles que sinto uma mão apertar forte este meu coração de reles poeta ao ver tanta escassez, tanta miséria e pobreza na rua onde moro atualmente.
Minha mãe dormia na rede do meu quarto. Hoje é o dia dos pais e pela primeira vez não estarei com o meu pai e pensei: meu pai enterrou três filhos jovens em menos de 9 anos. E eu posso ser o quarto filho a ser jogado e esquecido naquela catacumba fria, solitária, silenciosa e fúnebre que pertence à família do meu avô por parte de pai (meus avós maternos morreram antes que eu nascesse e meus avós paternos já partiram também.)
Esse texto é um grito silencioso, é parte de um desabafo do que está berrando e se derramando em meu íntimo. Depois de ficar internado no hospital e ser espetado por tantos médicos, passar por vários procedimentos cirúrgicos até chegar ao diagnóstico que “insuficiência renal crônica definitiva”, e estar fazendo hemodiálise três vezes por semana, chegando em casa tão cansado e abatido que caio no sono na cama, sem forças pra nada, pra absolutamente nada.
Morando atualmente em um lugar desconhecido, longe da minha casa, eu, que amava lecionar (sou professor de Língua Portuguesa há mais de 15 anos), agora de licença médica por tempo indefinido, pois não tenho condição alguma de trabalhar, de lecionar (que saudades sinto dos meus alunos e estudantes); eu, que sempre tive tanta paixão e tesão em viver, em dançar, em cantar, não importasse o lugar; eu, que lia um livro por semana, e buscava escrever pelo menos um texto por semana, agora, quando muito, leio apenas um livro por mês e olhe lá, e só tenho conseguido escrever um texto esporadicamente. Perdi quase tudo na vida e sim, estou me queixando, e sim, sei que isso não resolve porra nenhuma, e sim, não me interessa sua opinião e nem a sua compaixão, estou mentindo, me desculpem por estar sendo rude. Acho que esse texto mais parece uma queixa cheia de autopiedade e logo eu que havia prometido a mim mesmo não ter esse tipo de comportamento: autocomiseração narcísica.
Vou falar um pouquinho, só um pouquinho o que me aconteceu: depois que meu irmão mais novo faleceu em março deste ano, em uma clínica particular enquanto fazia hemodiálise, depois da morte do meu terceiro irmão(todos morreram aos 41 anos de idade), depois de tanto clamar e orar a Deus, depois que toda a minha família e tantas outras pessoas (padres, pastores etc.) oravam fervorosamente ao “Deus da Vida” para restituir a saúde do meu irmãozinho que era pai, que era esposo, que era irmão, que era filho, que era uma pessoa de quem todos gostavam, um ser humano tão inteligente e tão simples, depois de tantas perdas e dores e tragédias, meu deus agora é o silêncio. Nada peço ao silêncio. Nada espero do silêncio, assim como o silêncio nada pede a mim, nada me exige, nada me cobra, nada me promete. O silêncio olha, indiferente, para minha vida e para o meu silêncio, e há uma comunhão de nossos silêncios nessa dor compartilhada em silêncio por nós. Estou sozinho. É melhor assim. Tenho 44 anos de idade e posso morrer na diálise ou nesse processo tão difícil, tão penoso e tão sacrificante, e eu luto a todo instante para viver. Mas por que luto para viver, se acho que nada agora faz mais sentido pra mim, se não há mais alegria nem na minha vida nem na da minha família? Serei sincero a vós: luto para sobreviver e para viver principalmente por conta de um objetivo: quero continuar vivo neste mundo desconexo e injusto para lembrar e sentir.
Lembrar e sentir o quê? Lembrar a minha infância com meus irmãos. Lembrar tudo o que nós passamos, e buscar narrar toda essa história, todos os sentimentos que há nessa história, nesta vida: a história de amor e tragédia e amor e união da minha sofrida família. É por isso que luto para viver: preciso contar o enredo homérico dos meus pais, dos meus irmãos, preciso contar tudo o que aconteceu e o que poderia ter acontecido. E só peço a vida uma coisa, só peço a vida algo tão simples, só peço a vida isto: que me conceda alento, força e coragem para escrever intensamente tudo o que sinto e sentir intensamente tudo o que escrevo. (Amém)