VELHA MORADA

Inquietude sim! E das que angustiam o coração e fomentam ação imediata, tempestiva. Na minha meninice, inquietude era faniquito, coisa de muleque que não para queto, mas em grau menor que a doença de São Guido. Lembro de minha mãe raiar comigo: "tá cum faniquito minino, peratú!". Hoje é faniquito!

Saudade flamejante, em limiar de frondosa decisão - pueril - mas entranhada como raízes, nas lembranças da primordial morada, em meninice, na Mutuca (roça onde nasci); de quando minha família era toda jovem, presente e vital. Eu, primogênito.

O meu tempo passado parece atemporal, pois não se gasta nada para resgatar lembranças revividas em segundos, tudo anacrônico, menos os reais sentimentos seminais reificados.

Navegando na net, a localizei na mais recente foto do Google Earth, vi seu telhado, não era tugúrio, ao lado o tronco da bica no rego dágua, o trilho que sinuoso descia lindeiro a veredinha da aguinha, até ao mini exutório no Corguinho onde tinha o poço assombrado dos lambaris, dos carás, dos bagres, das traíras... Fisguei os tempos idos, com a isca da comoção, sem solidão, pois foi tão bom... Dói, mas se sabe que quanto mais dói: melhor foi! Seis décadas de ausências. Sou autóctone!

Numa sexta-feira, madruguei sozinho, fui para Ventania (Alpinópolis, cidade no sudoeste de Minas Gerais) - meu inteiro interior - onde jaz minha primeira morada, minhas raízes. Minha chegada foi surpresa para minha venusta mãe, fui recebido com abraços acolhedores, com sorrisos envolventes. Ela me ordenou, tome um banho, descanse; e prosseguiu: - para a janta, cozinharei feijão novo - das águas - tem taioba com ora-pro-nóbis, vou fazer angu com fubá de munho, arroz de pilão, franguinho caipira e quiabo, para nós dois.

No banheiro com chuveiro... queria a bacia! Com água aquecida no fogão de lenha, o sabão redondo preto de cinza com bucha da cerca. Primeiro lava-se rosto, cabeça e os braços, aí se entra e ensaboa o corpo, os pés e, por derradeiro, um enxágue final com água despejada na cabeça, roupa limpa e descanso. Mas o que não tem remédio, remediado está, banho de chuveiro. Fiz até barba, coisa sonhada na meninice. Sai de lá imberbe.

Janta não, banquete! Recheado de prosa, de sabores, de saudades. Como sempre, ela fez meu prato, relembrou certinho meus pedaços de frango preferidos. Duas cadeiras a mais, uma para meu querido e finado pai, outra para meu irmão, ausente. Todos presentes. Sobremesa, num prato ágata, montinhos de doce de cidra, leite e figo, além de uma taiada de queijo meia-cura, hummmm.

Mais a noite, tomei leite frio com farinha de milho, cama arrumada (pena que não era de colchão de palha, nem de capim, feito pelo tio Zé Candinho) com coberta colorida de lã de tear. Beijo de boa noite, mãe... Adormeci.

Disse Max Planck: Quando você muda a maneira como olha para as coisas, as coisas que você olha mudam! Atinei, com esta visita mudarei o que recordo, mas já posterguei tanto, e ciente sou de que há saudades que são asas, e nada é estático nas vontades extáticas. O que era grande na infância, fica pequeno na maturidade. E minha primeira morada era frondosa em minhas reminiscências.

Se pudesse, iria a cavalo, porém as estradas estreitas compridamente marcadas com rodas finas do carro de boi, por onde muito me andei, findaram, hoje, asfalto. Cavalgo o tempo há décadas. E Ruben Alves assim aludiu: “A saudade é a nossa alma dizendo para onde ela quer voltar.” Preciso ir.

Saí cedinho, madrugadinha, queria voltar para o almoço. O que levava duas horas a cavalo, gastei minutos. Eram duas horas de calmo, pensar, reparar nos detalhes do caminho, da história de cada cruz fincada enfeitada de adornos cristãos. Se encontrasse algum conhecido, proseava sem pressa. A água do cavalo no Corguinho do Pari, hoje tubulada, sumida, minguada, confinada.

Mesmo com a velocidade do carro, via, de relance, fisionomias do povo, sabia que família era, recordava. Primeiro vi a serra, pontilhada de casas que não tinham vegetação, substituída por café. As casas conhecidas, tais totens, permaneciam. Reduzi a velocidade para dar tempo de relembrar.

Cheguei finalmente ao meu sonhado lugar, abri a porteira e adentrei. Tinha gente no curral, a casa ainda dormia. É ruim chegar assim, assusta os moradores, pois têm histórias de malvadezas e roubos. Me dirigi ao curral que na época não tinha, aquele cheiro... como era bom. Um homem de minha idade veio me receber, na primeira prosa, nos reconhecemos, fomos colegas de classe no primeiro ano de escola rural, portas se abriram.

Ele me falou, ande por aí, deve estar com saudades enquanto termino o leite, e é bom não ficar perto do curral, vacas estranham, quebram o leite.

A esposa dele eu não conhecia, mas me trataram como membro da família, que sorte dei. Tomei café, bebi leite, ajudei no queijo, soube de todos da época. Povo sacudido. Me despedi com promessa de sempre ir visitá-los, o farei.

Da porteira dei uma reolhada, já com alma mais amena, gostei do que vi.

No almoço com minha mãe, contei detalhadamente tudo, recordamos! Em uma coisa ficou mais latente sobre minha primeira morada, "Morei em você, moras perpetuamente em mim.

Cesar de Paula
Enviado por Cesar de Paula em 10/08/2024
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