Enfeitiçado

É um estado de espírito que pode transformar a vida em um verdadeiro show de comédia. Não creio que possa ser uma comédia divertida, porém. Há quem goste, e eu não julgo. Aliás, julgo sim: como pode existir alguém que goste de viver situações embaraçosas? De perder totalmente o controle sobre as emoções? De render-se à força irracional? Como pode existir alguém que goste de estar doente?

Era para ser um simples "Oi!", e o sujeito se ver diante de gagueira repentina: "Oooooo-i". A língua parece se enrolar toda vez que esse meu amigo apaixonado tenta falar com a vítima. Sua relativa consciência de pensamento e clareza vernacular somem-se completamente, deixando-o em estado de estupidez permanente.

Esse meu amigo não sou eu, deixo claro. Se fosse, naturalmente não seria meu amigo. Mas enfim e de repente, palavras simples tornam-se impossíveis de pronunciar, e a única palavra que consegue emitir com desenvoltura é o nome dela, que faz questão de evidenciar em tom maior a cada duas ou três gaguejadas, deixando-se, em seguida, controlar-se por riso incontrolável.

Algo, para pessoas normais e saudáveis, nem tão engraçado que ela diz ou supõe o faz rir escandalosa e permanentemente, como se tivesse acabado de ouvir a melhor piada do mundo. E olhe que ele tem contato frequente com as piadas do ChatGPT! As das sua predileta, entretanto, na opinião e coração dele, são insubstituíveis e um trilhão de vezes mais engraçadas.

Esse meu amigo é mais um caso de cegueira seletiva. Ele não está normal e saudável: está apaixonado. Sua vista, embora míope e astigmática, pode notar, veja bem, até os menores detalhes no visual e interior da moça, para ele, eternamente linda, culta, inteligente, poliglota, versátil, brilhante/radiante, etceterás e tais, mas de repente esquece onde estão os bolsos da calça, ou até o próprio nome.

Atualmente assuntos exteriores, da grande ou pequena mídia, ou mesmo temas outrora de seu interesse, hoje, para ele, não têm o menor interesse. Para essas questões, tem uma excelente memória de curto prazo esse meu amigo, de modo que, se perguntarmos a ele, hoje, "Qual seu nome, João?", João (suponhamos que esse meu amigo chama-se João) não saberá responder. Mas lembra-se perfeitamente de cada palavra e pronúncia que sua Afrodite disse, mas não faz a menor ideia de onde estão os bolsos da calça ou qual seu nome próprio ou fictício.

Está enfeitiçado. Um feitiço que o faz sorrir sem motivo e quase o tempo todo, mesmo quando está sozinho e triste. Um feitiço terrível e parece que impassável, mais especificamente uma maldição, que o faz tão bobo, tão idiota, tão tantan, desregulado, desorientado, longe de qualquer indício de racionalidade. "Paixão", é o nome oficial da doença de que padece. Porém, nós, seus amigos um tanto dispersos, imaginamos que seja um feitiço menos grave.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 10/08/2024
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