COMO SETA FEITA EM PAU TOSTADO
Como seta feita em pau tostado
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza
O JACINTO DO REGO ROXO, brasileiro, casado, eletricista, se fazia de surdo para engambelar as pessoas. Melhor dito, quando o assunto não lhe interessava, tudo bem, nada de novo acontecia. Porém, quando aparecia gente nova no pedaço, ele gostava de cair matando tirando aquele sarro. E se divertia, a seu modo, usando esse expediente meio despadronizado. Estranhos de regiões próximas que não o conheciam, caiam direitinho na arapuca, o que fazia o Jacinto se divertir além da conta com seus aprontamentos fora de esquadro. Em oposto, todo mundo do lugarejo, notadamente da rua onde ele morava com a esposa, sabia dessas brincadeiras insossas e sem graça. Não falavam nada, contudo, indiretamente apoiavam a ideia, e, vez outra, se entregavam às boas gargalhadas. Apesar dessas tiradas incômodas, ninguém dava importância, até porque o fato dele se passar por surdo sem sê-lo não prejudicava ninguém.
Como toda regra tem a sua exceção, havia no meio dos condôminos, um sujeito que não suportava a história da falsa ausência de som do gangolino. Esse cara, o Mijardino Godói. O camarada ficava pê da vida quando acontecia alguma coisa diferente, ou um evento nas barbas da bucólica Pacatatu da Cutianão (cidadezinha provinciana incrustrada num interior bastante divorciado da capital, São Paulo). Sua vontade se fundava em mandar para os quintos o Jacinto, quando ele, frenteado às botas da matriz do padroeiro da localidade, o “santo das coisas perdidas,” não outro senão São Longuinho dos Três Pulinhos se deparava com o cretino atacando. Mijardino Godói o médico que todos adoravam, sabedor da fraude, trepava nos cascos, rodava a baiana, ao ver o Jacinto escarniando dos que vinham de retirados interiores (a maioria pacatos cidadãos que todos as tardes, chovesse ou fizesse sol, se reuniam na igreja para as missas do padre Eliximar Assunção).
Na hora em que o sacerdote discursava seu sermão, sobre um tema bíblico preparado para aquele evento, lá estava o descarado do Jacinto do Rego Roxo, no meio da turma dando uma de deficiente auditivo de araque, o que negligenciava em desatenção, causando transtornos e obviamente afugentando os zelos das santas palavras do pontífice. Com a aproximação das idas às urnas, os novos e velhos candidatos na caça aos votos, vagabundos e safados de olhos vidrados no calendário eleitoral, ambicionando mamar às custas dos pobres e sofridos, Jacinto se fazia presente nos ajuntamentos sem arrear pé. Sabia que os “futuros candidatos” se esmeravam falando bonito com seus discursos impecáveis em busca de votos, o que ocorria em encontros regados à churrascos e almoços de graça, bem ainda à farta distribuição de cestas básicas, roupas, calçados e até remédios. O furdunço, nessas ocasiões, se agigantava em profusão cada vez mais engrandecida.
Enquanto os candidatos jogavam a isca para pegarem seus peixes, Jacinto volteava em meio à turba visando agarrar os desprevenidos que não sabiam da sua endrômina. Assim, a certa altura, enfiado no meio da multidão, atacava. Batia nas costas de um e mandava o jargão:
— O que foi que ele falou?
A vítima, então, se punha a detalhar esmiuçadamente o que o futuro candidato propunha a realizar se eleito fosse. Jacinto, sério como um ladrão à espreita, se divertia a valer:
— Ele disso isso?
— Sim.
— Nossa!
— Trem de São Paulo até aqui. Já parou pra pensar?
Nas quermesses do padre Eliximar (geralmente levada a polvorosa de quinze em quinze dias) para a mantença das atividades paroquiais, Jacinto não perdia a chance. Se posicionava nos costados do clérigo e dos idosos que ele ia abraçando pelo caminho. Na hora em que o santo homem proferia alguma coisa, o descarado mais que depressa, investia:
— O que foi que ele falou?
O interlocutor explicava com a maior calma do mundo o que o ministro profetizara:
— Que Jesus, realizou seu primeiro milagre, transformando a água em vinho. E ele fará o mesmo aqui...
— Ele disse isso?
— Sim.
— Nossa!
De manhã em frente à delegacia de polícia, prenderam um sujeito por ter abusado de uma menor de idade. A galera berrava pedindo justiça. Jacinto escolheu um rosto desconhecido e a sua sacanagem não se fez esperar:
— O que foi que ele falou?
— O delegado acabou de prender um pedófilo... está anunciando que vai botar o assassino no pau de arara até que confesse o crime...
— Ele disse isso?
— Com todas as letras.
— Meu Deus, que horror!
O modus operandi sempre em repeteco. Jacinto do Rego Roxo não tinha variante. No abarrotado bar do Gordo, a moçada se reunia para beber e assistir ao futebol. Quando o Flamengo se fazia na berlinda, o ambiente lotava. Tinha gente saindo pela privada cheia de merda junto com a cordinha da descarga.
Logo pintava na área o Jacinto e a sua surdez indesejável. A tropa se fazia em exibicionismo ostentoso. “Pedro acabou de fazer um gol. Aos quarenta e quatro minutos do segundo tempo – berrava o locutor ensandecido. – Literalmente o artilheiro salvou o treinador Tite de ter um “tilte” e ir parar no hospital.” Jacinto atingia o nirvana e entrava em ação:
— O que foi que ele falou?
Nesse dia, entretanto, para seu azar, ele pegou sem querer e também sem perceber (em face dos frequentadores em perturbado mistifório, o doutor Mijardino Godói). O médico se aproveitou do descuido do abestalhado e mandou bala. Foi às forras:
— O Chico Gordo disse para um pessoal de fora, que assim que acabar o jogo e ele fechar o estabelecimento, vai passar na casa de um tal de Jacinto do Rego ou do resgo, não me lembro exatamente se rezo ou vesgo, aproveitando que o tal personagem não está em casa e mais uma vez amaciará as carnes da mulher dele...
Tomou fôlego e prosseguiu medindo cada palavra falada:
—... Não faz muito tempo, revelou a mesma ostentação para meus acompanhantes sentados naquela mesa ali perto do caixa, que está bebendo todas e preparando o “mastro” para enfia-lo, até os colhões, numa coisinha mais linda que a Sharon Stone...
O surdo embusteiro quase teve um ataque inesperado:
— Ele disse isso?
— Com todas as letras. Já imaginou nosso amigo gordão metendo o seu pé de mesa na esposa do tal cornudo?
Nesse dia o médico concluiu, de fato, que o surdo não tinha realmente nada relacionado a anacusia. Ele fazia a todos de bobocas e otários, usando a sua miopia libidinosa dos ouvidos enfermos em proveito próprio.
Resumindo a história. Naquele tardão da noite, depois que todo o povaréu se fez em recolha, Jacinto do Rego Roxo acampou como um Casanova em frente à casa do seu suposto “rival, ” o Chico Gordo. Quando o viu prestes a abrir o portão, partiu para o abraço. Matou o a sangue frio, não lhe dando a mínima chance de defesa, ou seja, obviamente sem um pingo de dó ou piedade. Praticou o bárbaro crime à desfecho de marretadas na cabeça. Após o tenebroso evento, roubou-lhe a bolsa com a toda a grana arrecadada em seu comércio e escafedeu da cidade. Nunca mais a sua surdez escarnecedora foi vista –, perdão –, a sua figura irritante se fez encontrada.
(*) Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo.