CAPELA MORTUÁRIA
Capela Mortuária
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza
OLÁ, POR GENTILEZA, com todo respeito, deixem-me apresentar a todos vocês. Pelo amor de Deus, não se assustem. Venho em paz! Não tenho nome de batismo, nem certidão de nascimento. Sou conhecida por todos como Capela Mortuária. No meu caso, uma Capela Mortuária de um cemitério de periferia. Vivo incrustada aqui nesse bairro pobre e humilde, cercada de pessoas boas e gentis que sabem o valor da vida e me aceitam como se eu fosse um ser de carne e osso que algum dia ajudará na preparação da última viagem para algum lugar que não sei exatamente onde é ou para que lado fica. Acredito, para alguns, eu seja uma figura esquisita, chata, pegajosa, rabugenta e inconstante. Para outros, obviamente eu represento a paz da serenidade e o atalho para o encontro com as almas que já desencarnaram e hoje descansam nos afagos do Poderoso.
Quero que compreendam, apesar da minha aparência, muito me alegro (sim, isso mesmo, muito me alegro) com a tristeza e a desgraça das pessoas. Como assim, “me alegro”? Tal coisa é possível?! Eu explico: vamos ver a Capela como um todo, indistintamente. Vou me descrever e situar entre as pessoas que orbitam ao meu redor. A Capela Mortuária é um local solitário, triste e impregnado de lágrimas e lembranças daqueles “mais chegados” que vieram dar o último adeus à uma personalidade querida que o Pai Maior chamou para morar junto com Ele lá no distante intransponível. Em face desse particular, eu me regozijo porque é nessas horas que as pessoas (as mais soberbas e de narizes em pé) se lembram que o outro lado sombrio e misterioso existe. Ninguém aparece por aqui para me dar bom dia. Ninguém sequer vislumbra que eu passo os dias dentro de um cemitério.
Sei que a morte é uma perda dolorida e irreparável. Um elo que as pessoas não gostariam jamais de ver se romper e sentir essa contristação se estraçalhando na própria pele. Ainda mais quando o que vai viajar é um personagem querido e admirado por todos, com uma legião imensa de amigos e admiradores. Todavia, não fosse a minha presença (ainda que para alguns “macabra”), acredito que ninguém daria às caras só para ver se eu ainda estou no mesmo lugar. Me alegro, pois, porque quando sei que vai acontecer um velório, eu me regozijo. Nessa hora, vejo gente de toda espécie. Percebo a algazarra das crianças correndo, gritando, festejando a alegria da vida plena, e isso me tira do chão, aviva o meu “eu” interior. Me perdoem por dizer certas coisas, porém, se eu não existisse, se não houvesse uma Capela Mortuária, parem e reflitam, meus amigos e amigas, não seria realizado aquele rito fúnebre, menos ainda o derradeiro tchau ao defunto.
Ele ficaria sem significado algum em exposição solitária, ou, no pior dos mundos, simplesmente não se alegraria em rever, pela última vez, as pessoas que faziam parte do seu dia a dia. Vamos aproveitar o ensejo e entender a minha significância pelo outro lado da moeda. É aqui nas minhas dependências que as pessoas (ainda que magoadas) se respeitam, trocam olhares amedrontados e, no fim, diante do inevitável, se abraçam, se beijam, trocam palavras carinhosas e, às vezes, até se perdoam. Aqui é onde todos prestam reverência, conforto, solidariedade, tudo num pacote destinado a proporcionar um elo de contemplação em harmonia diante da austeridade do adeus de uma pessoa querida. Em muitas culturas, eu desempenho um papel crucial no centro geográfico do luto, oferecendo um ambiente onde a comunidade pode se reunir para prestar suas últimas homenagens e refletir sobre a vida que o “de cujus” viveu enquanto se fazia entre nós.
Esses espaços, meus prezados, são projetados para acolher os enlutados com dignidade e serenidade. A minha arquitetura, se pararem para observar com mais acuidade, é frequentemente caracterizada por sua simplicidade e elegância, buscando criar uma atmosfera de ataraxia que facilite a introspecção e o consolo. A iluminação é suave e o uso de cores neutras ajuda a transmitir uma vibração de leveza, enquanto os elementos decorativos, como flores e símbolos religiosos, adicionam um toque de deferência e veneração à lembrança daquele que embarcará na viagem sem volta. Além da sua função estética e funcional, eu, Capela Mortuária, me vejo como uma reclusão momentânea de profundo simbolismo. Sou, sem dúvida alguma, o ponto de encontro onde se materializa a aquiescência coletiva e se compartilham memórias, onde amigos e familiares podem se unir em um ato de solidariedade e empatia.
É um recinto como qualquer outro, onde os envolvidos comem, bebem, contam piadas, vigiam atentamente a viúva, ou as filhas adolescentes, falam de aconchegos, e o silêncio reverente permite que os sentimentos da perda sejam expressos de todas as formas conhecidas. Cada irmã minha espalhada mundo afora pode refletir (e de fato reflete) a diversidade cultural e religiosa da comunidade em que se encontra. Em algumas tradições, meu enclausuro é adornado com ícones e imagens específicas, enquanto em outras, a simplicidade bucólica e a ausência de símbolos são preferidas para permitir uma abordagem mais universal do luto. Esses detalhes, embora variados, têm o objetivo comum, sempre, de honrar a memória do extinto e proporcionar, sobretudo, um ambiente neutro que solidifique o assediamento irreversível de despedida. O meu papel, como Capela Mortuária, vai além de um simples local físico.
Por derradeiro, considero esse refúgio como um ninho acolhedor único, agradável e sofisticado, que ajuda a transformar o que se chama de “luto pesado” em uma experiência compartilhada e significativa. Aqui, nas minhas entranhas, os rituais de despedida são executados com o cuidado de preservar a dignidade do “de cujus” e apoiar os enlutados em sua jornada para a aceitação e a cura da alma frangalhada. Em resumo, eu, a Capela Mortuária, me vejo e me sinto como um teto alvissareiro de amplidão profunda e, logicamente, de importância emocional e cultural. Não sou apenas um lugar comum onde se realizam cerimônias funestas. Em absoluto. Me vejo, acima das aparências, como um habitat que proporciona a reflexão para acalantar comenos inesquecíveis e de elevada melancolia. Ao oferecer este mimo de serenidade e comunhão, eu me engrandeço – acreditem – e me sinto alegre e realizada. Por mais que falem de mim, tenho a consciência objetiva de que desempenho um papel crucial na celebração da vida e na facilitação do trajeto envolvido no embarque do seu parente amado para os confins do Além-túmulo. Em vista de tudo o que eu disse, por favor, não me desprezem. Sou, a luz da verdade, uma espécie de mal necessário.
Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro.